30 março 2015

Dos fios de cabelo

Sexta-feira fui a uma vigília de oração quase toda voltada para as melhoras de uma pessoa que é importante numa determinada comunidade e que, muito antes de ser estatisticamente provável, se debate com uma condição de saúde grave. Ontem, numa esplanada com gente que me é próxima, ouvi uma frase: fulano (sendo que fulano tem mais ou menos a minha idade, 57 anos) disse-me que os último velórios a que a foi eram de gente da idade dele. E ouvi ainda: temos de aproveitar enquanto cá estamos. 6ª feira ainda fui a uma missa de corpo presente da irmã de alguém de quem sou amigo recente. Morreu de cancro, com 58 anos, talvez. Na minha ronda habitual de blogues, alguém cita o livro Amores Perros: se queres pôr Deus a rir, conta-lhe os teus projectos.  

Como já aqui escrevi várias vezes, a fronteira entre a graça e a desgraça é um fio de cabelo. Na sequência de uma análise médica faz-se um simples telefonema, e no destinatário tudo se desmorona; noutros tempos não tão tecnológicos, a diferença entre uma gravidez alegre e um filho com deficiências mentais profunda é um instante. Por outro lado, a fronteira entre a desgraça e a graça é, também, um fio de cabelo: os que perdem ou optam por apanhar um avião que não o que se desmorona; os que perdem o emprego e, com isso, descobrem uma vocação - ou a coragem para a seguir. 

Significa a frase dos projectos e do riso de Deus que não os devemos fazer? Não, não significa. O agricultor é o gestor sem uma folha de cálculo. Ambos projectam com base naquilo que sabem, com base naquilo que prevêem, com base naquilo que desejam. Projectar é acreditar; semear é acreditar. Viver é acreditar, sabendo que o mundo não é um lugar justo, que é, por vezes, um local profundamente injusto. Mas projectamos - uma sementeira, uma casa, um negócio, um projecto de vida. Projectamos, sabendo que tudo se esboroa nuns marcadores traiçoeiros, numa geada a destempo, num financiamento que não entra. Projectamos porque acreditamos. 

As mortes prematuras (pelo menos estatisticamente prematuras) devem fazer-nos pensar. Nos hábitos que devemos perder - o sedentarismo, o cigarro, o álcool em excesso, o peso - mas, acima de tudo, na precariedade da vida relacional. Hoje estamos aqui, amanhã somos pó, porque há o carro em contra-mão, a paragem súbita e irreversível do coração, o avião que embate nas rochas. O que devemos aproveitar? O tempo para deixarmos um mundo melhor do que aquele que encontrámos. Fazer o caminho que nos resta - um minuto, um mês, um ano, um século - sem zangas, sem incompatibilidades, sem lutas desnecessárias, sem rancores nem orgulhos, sem implicações gratuitas. Estar e não estar é obra de um instante. Saber aproveitar esse espaço de tempo indefinido, improjectável, é um desafio. Acreditar é agarrar o futuro e moldá-lo para o bem.

***

A primeira notícia sobre o desastre aéreo dos Alpes é uma estatística: morreram cento e não sei quantas pessoas; depois afunilamos a notícia e há cento e não sei quantos nomes; depois afunilamos a notícia e há cento e não sei quantas histórias. Às vezes afunilar é bom, porque nos dá a perspectiva certa do acontecimento: não morreram cento e não sei quantas pessoas; terminaram abruptamente cento e não sei quantas histórias.

JdB

3 comentários:

Acc disse...

Talvez viver como se não houvesse amanhã.
Porque, tal como as lendas antigas, só fica o que contarem de nós.
Belíssima e sempre oportuna reflexão.
Boa semana JdB

Anónimo disse...

Vibração
Inteligente que é uma
Dádiva de
Amor, a ser experienciada em cada instante do momento presente que me permite, como Agora, comentar.

Páscoa Boa

Anónimo disse...

Numa rua qualquer da cidade de Valência alguém escreveu num muro "somos instantes". É bem verdade.

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