23 abril 2015

Da linguagem suavizada

Fotografia de JMAC, o homem de Azeitão


No meu post Duas Últimas, da passada 3ªfeira, usei a expressão recentemente desaparecido para me referir a Percy Sledge. O meu querido amigo ATM (vou ter de encontrar uma fórmula diferente se persistirem estas referências que lhe faço) indignou-se. E escreveu-me, sendo que o citarei sem sua autorização: 'Recentemente desaparecido'. São tantos os eufemismos para suavizar. A idéia é morto ser um estado normal e até agradável, tipo 'recentemente casado', e fazer parte da narrativa curricular. E rematava: não é o 'povo quem mais ordena', mas o medo.  

Percebo - ou julgo que percebo, o seu argumento. Poderia ter escrito que Percy Sledge tinha falecido (uma expressão mais suave, que não aprecio) recentemente. Poderia ter dito morreu na semana passada.  Ou ter encontrado os motivos para o seu falecimento (lá está...). Se ele tivesse morrido de cancro (não sei, confesso, de que morreu), talvez devesse dizer que tinha morrido de doença prolongada, porque a expressão cancro (os brasileiros têm a vida facilitada, falando em câncer, nome de trópico?) tem conotações brutais. De facto o cantor não desapareceu, porque se sabe bem onde é que ele está... 

Noutro âmbito, não há desempregados, mas gente que foi dispensada. Também há as pessoas de mobilidade reduzida, quando se poderia dizer coxas, ou paralíticas, ou, simplesmente, gente de cadeiras de rodas. Não há gordos, mas criaturas com excesso ponderal (ou obesos, vá...), sendo que desconheço o equivalente suave para as pessoas muito magras - excesso de déficit ponderal? Os carecas são seres humanos que sofrem de calvície, sendo que a inversa não tem qualificativo piedoso.

O mundo da comunicação social está todo feito para não nos arreliar, para nos fazer sentir que a vida é um enorme caminho feito de beleza, pelo que a linguagem usada deve reflectir esse alinhamento cósmico favorável. Todos os jornalistas, estou certo, perceberão que, no meu caso, usarem a expressão excesso ponderal (ou obesidade vá...) é menos tormentoso do que falarem em gordura. Gostava talvez que não me chamassem canhoto, que tem uma dimensão pejorativa (o cruzes canhoto, por aí...). Talvez preferisse ser qualificado como cidadão que usa uma mão estatisticamente menos relevante.  Não sei, mesmo assim, de onde vem a ideia de que não se morre de cancro, mas de doença prolongada. Se os AVC matam tanto, deveremos criar uma expressão igualmente doce, que não fira sensibilidades?

Mudo ligeiramente de tema, ficando ainda pelos falecimentos. Um destes dias, um meliante terá morto uma rapariga e a sua mãe. Esta asfixiada, aquela apunhalada várias vezes. Na notícia do jornal inglês - porque isto se passou por lá - referiam-se à mãe como sendo uma mulher muito extrovertida. E referiam-se à filha como sendo muito extrovertida e gostando muito do seu cão. Não me parece que dissessem a actividade profissional das pessoas. Apenas as qualificaram como sendo extrovertidas e gostando do cão. O que é que isto nos diz? E se estas mesmas pessoas fossem introvertidas, tímidas, recatadas e não se interessassem pela companhia de animais? O que se mencionaria nos jornais?

Feita a divagação, vou ali à horta ver se o brócolo cresce com vista à sua deglutição, e se o alho francês já revela uma estrutura carnuda.

JdB

     

3 comentários:

Anónimo disse...

Em boa hora o comentam e provocam.

Anónimo disse...

Também não há arrumadores de carros, há gestores de espaços públicos. ;)
... Diz-nos que o as características importantes a reter sobre uma pessoa, não estão escritas num CV.

Anónimo disse...

...assim como não há mulheres (e até homens) da limpeza, nem lixeiros, há os auxiliares de, técnicos de...
O povo português é cheio de 'pruridos' e gosta muito de galões e nomes pomposos na lapela, como se fosse desprestigiante limpar retretes (sim, retretes que para alguns são apenas sanitas ou vasos sanitários), recolher o lixo (de todos) ou assistir e cuidar de idosos ou deficientes.

Em todo o caso, não é a profissão que nos define, apesar de esse ser em regra a forma como no geral as pessoas se definem e apresentam. Sou médico, sou advogada, sou desempregado. Como se a profissão fosse o melhor de si, e o mais socialmente (bem) aceite e sem ela não fossem ninguém, não prestassem.

Muito extrovertida, pouco feliz, inadaptado, correto, etc, parecem aos olhos alheios muito pouco quando comparados com Mestre em, licenciado pela Universidade de, Gestor na, Sir, filho de, ...

Um pobre/excluido/refugiado/emigrante/desconhecido/etc, morrem. Muitos, de cancro. Os outros, de doença prolongada, ou de doença. Falecem, partem, desaparecem. Raramente morrem.

As pessoas têm medo como ATM, diz. De quase tudo e da morte. E têm de falar da morte, essa coisa 'peçonhenta que nos persegue' desde que nascemos. Por isso douram a 'pílula', os nomes, cheios de mesuras e cuidados com a esperança que isso lhes alivie as dores, lhes devolva mais dessa vida que se escapa, quando apenas uma parte dela se esvai.

E no entanto, a morte é uma transição.

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