04 novembro 2019

Carta a um anjo

Partiste hoje, mas há 18 anos, e talvez por isso, por esta espécie de maioridade que se atinge agora, esta carta vá diferente das que te escrevo há tanto tempo: tudo assenta numa pergunta recente que foi respondida alguns dias antes de ela ser proferida, como se o mundo pudesse andar ao contrário, ou começássemos viagens que acabam muitos anos antes.

Num dia da semana passada encontrei alguém que não via há muito tempo. Perguntou-me pela família e, tendo ficado a saber da tua passagem ao estatuto de anjo, fez uma pergunta aparentemente estranha: e conseguiste aguentar? A estranheza da pergunta decorria do facto de eu estar ali a responder, inteiro, vertical e, aparentemente, equilibrado, o que significava que sim, que conseguira aguentar aquilo que é da resistência humana. 

Ando para trás, para a conferência a que assisti em Lyon, onde uma comunidade alargada de pais, sobreviventes, profissionais ou voluntários de associações mundiais discute o estado da arte da oncologia pediátrica. Numa das sessões, alguém perguntou quantos pais ali estavam que haviam perdido filhos para esta doença. Levantaram-se 15, talvez: a chilena e a russa, o israelita, a indonésia, o francês, eu, e outros cujas nacionalidades não fixei. São caras familiares que percorrem os corredores destas conferências há um bom par de anos. São pessoas que riem e choram, que se comovem com as pequenas vitórias partilhadas, se entusiasmam com os avanços científicos que salvarão outras crianças que não as suas, que não as nossas, vítimas de gravidade maior ou da insipiência da técnica naquele tempo. São pais para quem a vida não faz sentido de outra forma. A cada um deles este meu amigo poderia ter perguntado e conseguiste aguentar? sabendo que a resposta era óbvia - estavam todos ali a lutar por qualquer coisa que já só beneficiará outros filhos de outras pessoas. Podiam ser gestores, passar férias nas Antilhas, arranjar ocupações prosaicas. Escolheram, no entanto, conviver com a oncologia pediátrica, com aquilo que personifica a dor.

Num século muito diferente do actual, num país diferente, o conde Tolstoy afirmava (e cito-o em francês por via da concisão da frase): tout comprendre c'est tout pardonner. É fatal, como já disse neste mesmo espaço, que eu olhe para estes pais sofridos com um olhar mais intenso: o que fazem? Como pensam? De que sorriem ou como recolhem ao leito depois de horas a falar do mesmo tema? De que forma reagem, o que os desequilibra? E eles, como olham para dentro de si próprios? A frase de Tolstoy está toda voltada para o outro. Isto é, perceber o outro é perdoar no outro aquilo que tem de ser perdoado. Mas a frase também pode ser lida numa dimensão introspectiva, ou seja, perceber-me é perdoar-me. Perceber de onde vêm as minhas fragilidades, as minhas obsessões, os meus fantasmas, é perceber quem sou, e ao perceber perdoo-me, no sentido, não do desagravo da ofensa, mas da pacificação da minha convivência comigo próprio e, obviamente, com os outros.

***

Nunca nos devemos esquecer que também podemos encontrar sentido na vida quando nos confrontamos com uma situação sem esperança, quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada. O que interessa, então, é dar testemunho do potencial especificamente humano no que ele tem de mais elevado e que consiste em transformar uma tragédia pessoal num triunfo, em converter o nosso sofrimento numa conquista humana.
Viktor Frankl 

Ninguém me perguntou como aguentaste? Também nunca perguntei ao israelita ou à indonésia, à chilena ou à russa. Mas todos, estou certo, se cruzaram com Viktor Frankl, com o conde Tolstoy, com o Deus em que acreditarão, ou com o ensinamento sábio que nos manda perguntar para quê?, e não porquê?. Todos aguentamos, porque todos demos aquele sentido à nossa vida, porque olhámos para dentro de nós para nos pacificarmos com os nossos dramas.

JdB, em nome de todos os que te conheceram e amaram; mas também em nome dos que, não te tendo conhecido, te amaram através do afecto que nos deram.

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