20 novembro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

O PRIMEIRO MUSEU ARRANCOU COM ARTE E POLÉMICA A RODOS - VATICANO

A história tende a repetir-se, no melhor e no pior. É raro a audácia ser compreendida e devidamente aclamada, quando surge. Precisa de bastante tempo para ser digerida e reconhecida, quase sempre a título póstumo para os visionários, pois a maioria não costuma acompanhar, em tempo real, um rasgo diferente do padrão estabelecido. Aos audaciosos com talento cabe-lhes aguentar o desconforto de estar à frente do seu tempo. E assim chegamos ao primeiro museu público do Ocidente, por iniciativa do Vaticano, que se antecipou em vários séculos aos congéneres das grandes metrópoles europeias, com excepção de Florença, cuja décalage se ficou por sete décadas. 

O termo museu inspirou-se na expressão já conhecida em Roma para referir as grandes colecções de arte privadas – os «templos das musas». Na capital do Império, as casas e os sumptuosos jardins dos patrícios romanos rivalizavam em estátuas, fontes, pinturas e peças que deslumbravam os convidados. A alusão às 9 musas das artes e ciências provinha da mitologia grega, pois tinham sido geradas por Zeus para celebrar com sabedoria e sofisticação uma vitória marcante na vida atribulada dos deuses helénicos. 

O grande salto do coleccionismo de peças de elevado valor estético praticado na Antiguidade, para o serviço público, só foi dado no alvor do século XVI, por mérito de uma sequência feliz de Pontífices italianos, especialmente sensíveis ao potencial educativo da arte. A ousadia chegou à própria concepção do local, que não devia destoar do esplendor das peças exibidas. Assim, foi erigido um palácio para abrigar a magnífica colecção, que os Papas do Renascimento queriam partilhar com o grande público. Depois das catedrais góticas, o Belo voltava a impregnar o sentido missionário de uma cristandade cheia de contradições – marca d’água da presença humana – mas exigentíssima no que respeitava a saborear a beleza da criação – marca d’água do Criador. 

Pioneiros na arte aberta ao público, os Museus Vaticanos (Musei Vaticani) foram inaugurados em 1506. A outra grande iniciativa coube às Gallerie degli Uffizi, que abriu portas em 1581. Já o primeiro museu moderno, assim considerado porque se autoproclamou destinado à ‘educação universal’, despontou na Universidade de Oxford, em 1683, com o nome de Ashmolean Museum. O British Museum data de 1753, o Hermitage de 1764, o Louvre de 1793 e o Prado de 1819. Isto dá a medida do jet lag que os separa do Vaticano. 

Recuando a 1506, dir-se-ia que uma ideia tão feliz só podia colher aplausos e apoios… Mas não, há sempre expectativas diferentes, incluindo as legítimas divergências de gosto e objectivos. Curiosamente, no caso do Vaticano, o escândalo veio da audácia das poses nuas e da profusão de obras sobre temas pagãos concebidas por gentios. Este puritanismo descabido aos olhos da nossa geração deu brado à época. Felizmente que embateu nos critérios mais apurados dos Pontífices, que souberam privilegiar a qualidade artística das peças, numa ousadia pouco tolerada por grande parte da população. População que formava parte da cristandade. Já é famoso o episódio anedótico e real (!) dos pintores menores que Michelangelo colocou no lado do inferno pintado no tecto na Capela Sistina, plenamente reconhecíveis para humilhação deles, porque se tinham atrevido a acrescentar umas roupas às figuras despidas saídas do pincel do génio renascentista. Entenda-se que aqueles artistas tinham trabalhado a mando de cardeais, que achavam imprópria tanta nudez inundar o espaço da sala de eleição do sucessor de Pedro. Naturalmente que descartavam o sentido mais profundo de Michelangelo, a confrontar o espectador com os momentos cruciais da criação e do juízo final, onde apenas persiste e vale a essência do ser humano em corpo e alma.   

Dois textos gentilmente cedidos pelo autor – um com anos, outro com dias – relembram a polémica da novidade daquele primeiríssimo museu, bem como o brilhantismo que inspirou aqueles Papas italianos de gema:

Os primeiros museus do mundo

5-Nov-2015

Desde que o papado começou a ter influência na administração civil da cidade de Roma, as grandes preocupações foram os pobres, a instrução e a cultura. Os Papas queriam que o povo convivesse com a arte, em praças belas, decoradas com esculturas e fontes, em edifícios públicos com pinturas e tapeçarias de qualidade. No século XV, esta preocupação adquiriu um matiz novo, quando foi necessário proteger as obras de arte que não podiam ficar à intempérie, ou eram substituídas por outras mais modernas. Para que a população tivesse livre acesso a esses objectos, tal como contemplava as obras de arte espalhadas pela cidade, surgiram os primeiros museus do mundo.

Como é óbvio, foi preciso inventar o nome, porque a palavra «museu» não existia com este significado. Com sentido de humor, importou-se a palavra grega «muséon» (palácio das musas). Sem pruridos de linguagem sexista, o conjunto, incluindo os esplêndidos exemplares de Júpiters e de Apolos, ficou conhecido como «as musas», figuras femininas mitológicas inspiradoras das artes.

A arquitectura dos edifícios foi uma inovação, porque nunca se tinham construído edifícios para expor objectos de arte. Quando, mais tarde, apareceram outros museus na Europa, o modelo mais corrente foi aproveitar os palácios dos regimes depostos, por exemplo o Hermitage em S. Petersburgo, ou os palácios de coleccionadores ricos, por exemplo a National Gallery em Londres, para mostrar os respectivos tesouros. O museu do Louvre também se instalou num palácio antigo, como muitos grandes museus. O museu Vaticano e os outros museus construídos pelos Papas foram diferentes, porque nunca foram palácios, nunca morou lá ninguém, mas foram projectados de raiz para serem visitados pelo povo. Só séculos mais tarde, no século XIX e sobretudo no século XX, se construíram outros museus de raiz: por exemplo, o museu Calouste Gulbenkian em Lisboa, ou os Guggenheim de Nova Iorque ou de Bilbau.

Outra característica invulgar do museu Vaticano é que não tem peças roubadas. Pode dar vontade de rir constatar que esse sistema expedito (digamos assim) foi adoptado pelos principais museus. O museu do Louvre começou com uma colecção de pintura e escultura roubada às igrejas francesas; o museu nacional de Arte Antiga, em Lisboa, tem uma origem semelhante; outros grandes museus nasceram do saque dos tesouros do Egipto ou da Grécia. O próprio museu do Vaticano foi saqueado no princípio do século XIX por Napoleão Bonaparte. Fala-se em um milhão de caixas levadas para Paris, com peças de arte e arquivos. Com a queda do Imperador, aquilo que foi possível recuperar voltou para Roma.

O museu Vaticano e os outros museus que os Papas promoveram geraram polémica desde o início. Que desperdício oferecer arte ao povo! Os ateus de há uns séculos acusavam o Vaticano de hipocrisia, com o argumento de que expor divindades pagãs era fomentar a idolatria. Hoje em dia, diz-se que a arte é luxo e desafia-se o Vaticano a vender a arte aos ricos para dar o dinheiro aos pobres (os ateus da internet usam termos mais veementes, que me dispenso de reproduzir).

Está à vista que os católicos são tanto ou mais pecadores que as outras pessoas, contudo, também é verdade que a Igreja foi – e continua a ser – uma instituição muito especial.

Uma das alas das várias galerias de escultura antiga.

O Vaticano e as divindades pagãs

17-NOV-2019

A ideia de construir um museu nasceu há mais de cinco séculos na cabeça de alguns Papas. […] A ocasião surgiu por causa da abundância de obras de arte da época do império romano que os donos deitavam fora e corriam o risco de se perderem. Como se tratava sobretudo de uma colecção de divindades pagãs, o povo chamou à colecção «Casa das musas», ou «Museu». As musas eram as nove deusas gregas inspiradoras da arte e da ciência.

A intenção dos Papas não foi organizar um depósito fechado, onde só os eruditos fossem admitidos, o objectivo foi reunir uma colecção que pudesse ser visitada por qualquer cidadão e fomentar as visitas. Organizar todo aquele acervo deu imenso trabalho e exigiu a construção de um edifício invulgarmente grande, uma espécie de enorme palácio aberto a todos os visitantes. […]

Apolo Belvedere - estátua trazida para Roma pelo Papa Júlio II em 1508. 

A proposta de reunir uma colecção tão vasta e construir pavilhões tão gigantescos não foi bem recebida por todos. Alguns criticavam o que consideravam ser a promoção do luxo, do supérfluo, em contraste com a austeridade da vida de Cristo. Vários bispos eram desta opinião e inclusivamente um Papa interrompeu as visitas e mandou cobrir com tapumes algumas estátuas que decoravam as fachadas exteriores. Outra objecção tinha a ver com o conteúdo maioritariamente pagão das obras de arte, porque o Museu do Vaticano tinha algumas peças cristãs, sobretudo pinturas, mas a maioria das obras eram representações de divindades pagãs. Estas pessoas temiam que o museu se tornasse uma espécie de templo de uma religião sincrética.

Claro que os Papas que idearam o Museu do Vaticano não queriam favorecer o luxo mas o apreço pela beleza. […] Foi Deus quem impregnou o universo de beleza. A cor, a luz, o fogo, a música, até a eloquência do discurso e a emoção do amor. As obras de arte realmente belas participam na sinfonia cósmica da beleza. Segundo os Papas, toda a beleza tem origem em Deus e conduz as almas a Deus.

Também é evidente que o Museu do Vaticano não se destinava a ser um novo templo pagão e, de facto, a preocupação dos que temiam que isso acontecesse não correspondia a um perigo real. Tanto quanto se sabe, nenhum visitante do museu se tornou pagão no final da visita.

Nesta semana, um grupo de individualidades de todo o mundo interpretou a presença de um fetiche amazónico no Vaticano como atitude idolátrica do Papa Francisco e dos bispos que estavam com ele. 

Outubro de 2019 durante o Sínodo da Amazónia

O teor violentíssimo com que condenaram o Papa mostra o profundo sofrimento que aquela cena lhes suscitou. O tom exaltado do manifesto reflecte certamente um genuíno amor a Deus mas talvez aquela agressividade seja interpretada por alguns como falta de respeito e de amor ao Romano Pontífice. De certa maneira, a história repete-se. Não nos compete julgar ninguém. Rezamos por todos.

José Maria C. S. André


Se custa assistir à repetição de erros e de controvérsias talvez escusadas, a reincidência também ajuda a relativizar-lhes o peso. Outras gerações terem sobrevivido aos deslizes, faz-nos acreditar que também conseguiremos suplantá-los e melhor imunizar as gerações futuras contra as próximas recaídas. Se os antigos teriam muito a aprender connosco, também nós temos imenso a aprender com eles, sendo que a bola já só está do nosso lado… 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

2 comentários:

Anónimo disse...

Transcrições:

A história da Igreja não é uma história de anjos nem de santos, mas de homens e de mulheres. A Igreja é composta pelos que buscam o amor de Jesus Cristo. E que falham com frequência. A diferença para o resto da humanidade está no primeiro facto — a busca — não no segundo — a falha. (João César das Neves)

Que a Igreja é humana, faz parte da definição. Uma boa definição de Igreja é:
A presença do divino numa realidade integralmente humana.
É isto que a Igreja é. Isto é o Mistério da Encarnação. É o método que Deus escolheu para salvar o homem. (João Félix Seabra)

A história da Igreja é uma longa luta contra a tentação de se tornar religião. E as várias heresias são religiões que se formaram à volta de Cristo.
Lutero fez um judaísmo cristão. Pelágio um marxismo cristão. Jansenius um islamismo cristão. Os maniqueus um zoroatristo cristão. A gnose um hinduísmo cristão.
Para aqueles que se mantiveram na Igreja, as dificuldades para evitarem transformar a sua fé numa religião têm sido enormes. (João César das Neves)
ao

Anónimo disse...

Obrigadíssima pelas reflexões imperdíveis sobre o que é ser /manter-se Igreja. MZ

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