27 dezembro 2019

Da diferença de olhares

Sigo, na Netflix, a terceira temporada de The Crown, uma série que retrata a família real inglesa desde o fim de Jorge VI até (parece-me que lá chegará) à morte de Diana. Falam-me do actor que é isto, da actriz que é aquilo e mais não sei o quê. Confesso que olho para a série como um documentário que, não sendo factual, terá muito de verdade. Nesse sentido não me interessa tanto a representação, mas a interacção da rainha com os políticos, as ideias de Isabel II quanto ao seu papel de mãe, de mulher ou de soberana de uma nação, o que alguns estadistas pensavam dela. É a dimensão histórica da série; mas também me interessa o pequeno pormenor: o protocolo, as tradições, os hábitos ou as manias. 

O último episódio que vi aborda a ida do homem à lua: vemos o entusiasmo do Principe Filipe, a emoção juvenil das crianças, o maior ou menor interesse dos outros adultos. E há um momento que me chamou particularmente à atenção: o Duque de Edimburgo, sabendo que os astronautas irão ao palácio numa tournée mundial, pede para ter um encontro privado com eles, fora do burburinho protocolar. Vemo-lo a redigir um conjunto de perguntas num pequeno papel, sendo que uma das perguntas fala no destino do Homem para lá dos limites da terra. Sente-se uma certa dimensão filosófica naquele feito tecnológico.

O encontro de Filipe com os americanos é decepcionante. Em frente dele estão três técnicos sem qualquer olhar transcendental sobre o que fizeram. Limitaram-se, segundo eles, a cumprir procedimentos para cumprir uma missão. Falaram do cansaço e, prosaicamente, do barulho de um frigorífico. Não se sentiram próximos de Deus, não sentiram pequenez ao ver a Terra de longe, não olharam para além do desfocado: procedimentos, procedimentos e mais procedimentos. No fim quiseram saber como se vivia no palácio, quantos quartos havia e se o Duque de Edimburgo conhecia os cantos à casa. Os astronautas acabaram numa correria por uma escadaria acima e a tirar fotografias (que hoje seriam selfies...).

A expectativa é, na verdade a mãe da desilusão. E a desilusão do Príncipe Filipe, embora genuína e compreensível, é certamente injusta. Ir à lua não é ir ao Guincho num dia de tempestade; sair de uma cápsula rumo ao quase total desconhecido não é a contemplação de uma paisagem açoriana onde o silêncio nos convida à transcendência. Ir à lua é, de facto, cumprir procedimentos; é ter o coração acelerado, é estar atento a todos os sinais - pressão, temperatura, teor de humidade, indicadores de funcionamento de manómetros ou de motores ou de aparelhos que permitam a respiração. Por vezes queremos que os outros vejam mais além; mas os outros querem é continuar a viver. E seguramente voltar para casa. Deus, se pensaram nele, teria essa função - ajudá-los no regresso.

JdB

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