23 novembro 2021

Da misericórdia, ou das noites de cada um de nós *

 Theodor Adorno afirmou: to write poetry after Auschwitz is barbaric. Cruzei-me com esta frase anteontem. Opto pela interpretação simples, ainda que potencialmente incorrecta: a noite de Auschwitz matou a possibilidade do belo. O pensamento veio também a propósito de outras lucubrações derivadas de dizer coisas, ouvir outras, ler frases, apanhar fragmentos de fragmentos, fazer dos fins de tarde quentes em esplanadas sossegadas momentos de inspiração e espanto. 

Cada um de nós tem o seu rol de noites de Auschwitz, ainda que elevadas à potência comezinha das vidas mais ou menos fagueiras. São os dramas, os desgostos, as perdas, as traições; são os olhos postos no chão com que enfrentamos os nossos mais próximos a quem, com vergonha inútil, imaginamos a palavra desilusão inscrita nas pálpebras. Transpor a frase de Adorno para a nossa ruela terrena seria afirmar que nenhuma felicidade (nos) é completa - talvez mesmo nem permitida, nalguns casos - depois do renque de sofrimentos acima. Como se a existência degenerasse então numa espécie de loiça de refugo, vedada que nos está a partilha de refeições em pratos de primeiríssima qualidade. 

A vida tem de ser a procura da paz, mais do que da felicidade. Já aqui o disse, citando Hans Kung. À noite de Auschwitz temos de contrapor os olhos postos no Céu, onde está a resposta de tudo para tudo, a luz perene que ilumina a alma de quem sofre e de quem cuida. Antes de olharmos para o lado temos de olhar para cima, dar à relação horizontal uma dimensão vertical. Só o Amor nos salva - o amor pelos que nos estão mais próximos, o amor que é verdade, transparência, partilha, pedido de ajuda, mãos abertas que significam impotência e ansiedade. Ao olhar que pede damos uma palavra que enxuga lágrimas, não um cilício que aperta ilhargas.

Erbarme dich, significa, em alemão, tem misericórdia. Ouvir a beleza mais triste pode ser um acto redentor, um módico de iluminação na noite de Auschwitz, a generosidade divina que nos converte, nos faz perceber que é mais importante deixar traços do que provas. Só o Amor nos salva - e a misericórdia, que é compaixão.

JdB 


* publicado originalmente a 3 de Outubro de 2014

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