20 dezembro 2021

Da infância e do Natal

Descalço venho dos confins da infância
Que a minha infância ainda não morreu.
Atrás de mim em face ainda há distância
Menino Deus, Jesus da minha infância,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu

(...)

***

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

(...)

Pedro Homem de Mello, autor do primeiro poema (Entrega) nasceu em 1904 e morreu em 1984. Fernando Pessoa, que pela pena de Álvaro de Campos escreveu Aniversário, nasceu em 1888 e morreu em 1935. Não sei se alguma vez se cruzaram - presumo que seja improvável - mas as datas não o tornam impossível. Vejo-os sentados em Afife ou em Lisboa, tão diferentes um do outro, a perorarem sobre coisas diversas. Gostava de imaginar que falaram sobre infância, um tempo que terá sido diametralmente oposto para ambos os poetas.

***

O Natal, momento intenso que se avizinha, é um tempo feliz para as crianças; grande parte da alegria dos adultos deriva do facto de ser um tempo feliz para as suas crianças. Não nos comprazemos, em Lisboa, com a alegria das crianças em Copenhaga ou no Illinois; comprazemo-nos com a alegria das nossas crianças que estão ao nosso lado, cuja alegria nos contagia porque contribuímos para ela. 

Se uma criança pudesse responder de forma inteligente a uma pergunta disparatada, diria: o que é a minha infância? O tempo em que eu sou feliz e ninguém está morto.  Os adultos sorriem felizes para a resposta, porque se há coisa que não queremos para quem é o melhor do mundo é que falem de mortos. Mas esses mesmos adultos olham para dentro de si e entregam ao Menino Jesus da sua infância tudo o que têm, que é o lastro que a vida nos dá, e que não afecta as crianças: memórias, desalentos, perdas, conquistas, ilusões, esperanças. Na véspera e dia de Natal, momento de todas as mudanças, sentem a alegria que lhes chega por interpostas pessoas.

Um dia destes escreveu-me do Brasil uma mãe que não conheço pessoalmente, que perdeu um filho pequeno para o cancro. Perguntou-me: de um bereaved parent a outro, como fica o Natal após tantos anos de perda? Vou pensar na resposta, neste embarras du choix que é querer transmitir esperança em dias bons e querer ser transparente, mostrar uma realidade que é volátil. No meu caso já lá vão 20 anos, e sabe Deus quão diferentes foram todos esses Natais. Para muitos de nós, Pais que passaram por esta perda brutal, esta quadra é uma lente que amplifica tudo: a exaltação das memórias que se sossegaram ou o vazio dos lugares à mesa. Como fica o Natal após tantos anos de perda? Fica diferente - para nós, pais em luto, e para todos aqueles para quem as perdas (quaisquer que sejam) são mochila de que não se livram, por desejo ou incapacidade.

Há duas décadas, quando percebi que o essencial era invisível aos olhos, que vejo o Natal como um tempo difícil para quase todos os adultos. É a voragem e a agitação da época que cansam e desfocam do essencial. Mas é, também, um olhar retrospectivo sobre a vida, sobre o excesso de luz dolorosa numa parte sombria das nossas existências. Por vezes o que custa sarar não são as mortes físicas e irremediáveis que têm nomes e rostos, mas o intangível que se perdeu e que só se descreve, não se nomeia. 

Há perdas que são como os filhos que desaparecem, para as quais há sempre uma esperança: um telefone que partilha uma informação, uma campainha de porta que se abre para o milagre; porém, a redenção dessas perdas é também um sorriso, uma mão estendida, um beijo, pequenos sinais de que voltámos ao Jesus da nossa infância, ao tempo em que éramos felizes e ninguém estava morto. Mas o Natal pode ser um excesso de luz, nem sempre a que queremos ou de que precisamos e, nesse sentido, a nitidez do olhar de um adulto é a seta com que fere o próprio coração. 

Olhar em volta por esta altura é perceber uma diversidade que pode ser um bom estudo sociológico, um pensamento demasiadamente crítico ou uma tolerância que ensina: o Natal é tudo e o seu contrário. É momento de alegria pontual, quando parece que somos o melhor de nós em dois dias; é um momento genuíno de partilha e de convívio. Mas é, também, um momento de fragilidade e nostalgia pela memória dos desaparecimentos, das ilusões perdidas, das ausências que se nomeiam ou não.

Resta-nos a certeza de que o Natal é o Menino Jesus que nos devolve o olhar de ternura com que O vemos nas palhas. É Ele que sairá do Presépio para nos dar a Sua mão e nos guiar na luz e sombra que existe em todas as nossas vidas. Quando não houver mais ninguém, é Ele que rirá connosco e que chorará connosco. E é Ele q nos levará para o Céu, quando chegar o momento. O Natal é humano, fragilmente humano.

JdB

2 comentários:

Anónimo disse...

Estou contigo.

Grande abraço,
fq

Laurus nobilis disse...

Um grande abraço

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