08 dezembro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 VERDADE PRODUZIU HEROINA DA DEMOCRACIA, LIVRO E FILME

Em vésperas da invasão do Iraque, iniciada a 20 de Março de 2003, George W. Bush defendia com fervor que o seu país e os aliados deveriam entrar no Iraque, afastar Saddam Hussein do poder e salvar o mundo de supostas armas de destruição maciça, que o tirano do Médio Oriente estaria a acumular para chantagear e impor os seus caprichos. 

Como os EUA e o Reino Unido estavam isolados no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) a favor do assalto militar, concordaram em incumbir um diplomata sueco acima de suspeita para averiguar, in loco, a veracidade sobre as ditas armas. Ao chegar de Bagdad, Hans Blix foi seguro a explicar que não descobrira nada de suspeito e ainda esclareceu que a guerra nunca seria boa solução, pois tratava-se de um alvo móvel, fácil de retirar do país antes de as forças anglo-americanas aterrarem no Iraque. 

Nem esta conclusão abrandou os esforços da Casa Branca para convencer a opinião pública interna e externa acerca dos méritos daquela intentona. Enquanto isto, as  manifestações contra engrossavam à medida que a data da guerra se aproximava, enchendo as grandes praças das capitais europeias e de várias cidades norte-americanas. Bush e Blair persistiam no seu plano, resolvendo pressionar os vogais do CSNU para conseguirem uma maioria de votos a favor, capaz de conferir um mínimo de legitimidade a uma ofensiva tão criticada e anti-popular. 

Em Março de 2003, contra tudo e contra todos (a votação no CSNU também fracassou), o exército anglo-americano abriu as hostilidades, como se fosse uma inevitabilidade. As tais armas altamente perigosas nunca foram encontradas e o Iraque ficou devastado, sofreu perdas humanas na ordem das centenas de milhar. Hussein foi logo deposto, mas o descontrole das instituições tornou o país ingovernável e pasto fácil de extremistas assanhados. De facto, um par de anos depois, despontava nas profundezas do Iraque o movimento terrorista DAESH (ou ISIS), que provocou uma onda de mortandade e de ruínas pelo Médio Oriente, enlutando também diversas metrópoles europeias com atentados ferozes. Ironicamente, a destruição maciça tinha sido despoletada por Bush e Blair, qual caixa de pandora infernal. 

A nebulosa sobre os motivos reais daquela estranha guerra adensaram-se, até pela artificialidade da narrativa que a tinha sustentado. Seria a voracidade da indústria de armamento? Seria antes a geopolítica dos recursos energéticos e as ameaças de Hussein em deixar de comercializar em petrodólares? Haveria outras motivações de aliados dos EUA na região, irritados com as políticas de Hussein? 

Naquele caldo de inverdades esgrimidas pela Casa Branca, com o respaldo de Downing Street, poucos nos media britânicos questionaram a política de Blair. Um dos poucos gestos para tentar evitar uma guerra baseada em mentiras, veio de uma mera tradutora de mandarim dos serviços de inteligência ingleses – Katherine Gun. À data, foi especialmente corajosa, pois tinha plena noção da gravidade do crime de desobediência em que incorria (contra a «Lei dos Segredos Oficiais»), ao divulgar um memo secreto da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA) a pedir ajuda ao congénere britânico para coagirem os delegados dos países pequenos com assento (rotativo) no CSNU a votar a favor da ofensiva recomendada por Bush. 

Esta história verídica encheu tabloides na imprensa inglesa, passou depois para livro da autoria de Marcia e Thomas Mitchell: «The Spy Who Tried to Stop a War: Katharine Gun and the Secret Plot to Sanction the Iraq Invasion». Em 2019, apareceu nas salas de cinema com o título: «Official Secrets»1.   A ligação aos factos fez o realizador escolher para intérprete do Primeiro-Ministro britânico o próprio Tony Blair, e para desempenhar o Presidente norte-americano, o próprio Bush filho.  A protagonista aparece apenas no fecho do filme.

Katherine Gun, interpretada por K.Knightley, aparece em entrevista no final do filme, à saída da sala de audiências.  

Para lá da qualidade de inúmeras interpretações – como as de Keira Knightley, Ralph Fiennes, Matt Smith, etc -- é impressionante confirmar como o impacto das escolhas de cada um – ora em sentido positivo, ora negativo –  contam muito para o desfecho final. E na Inglaterra daquele início de século XXI, Katherine Gun não esteve sozinha. Alguma democracia funcionou. Por isso, foi possível cumprir parte da sua intenção, de desvendar a verdade aos seus concidadãos, com pena de não ter conseguido impedir o banho de sangue que foi aquela invasão, sobretudo do lado iraquiano.  Será dos traços mais impressionantes desta história ser sustentada pela coragem desmedida de pessoas em postos-chave, que tomaram a defesa da causa mais frágil e alvo de algo bullying por parte de departamentos do Governo inglês de então. Porém, advogados, jornalistas, um par de políticos de primeira água e seus assessores alinharam com K.Gun, cada um seguindo a verdade conforme lhe era dado ver, sem se intimidar por leis de contornos discutíveis. 

Katherine Gun protagonizou uma sequência de actos heróicos, nomeadamente pela rapidez com que confessou às chefias ter sido ela a fazer chegar à imprensa o tal documento classificado, para não deixar adensar suspeitas injustas sobre outros colegas do serviço, que estavam a ser mais apertados pelos serviços secretos para confessarem aquele crime. 

Um aspeto conseguido no filme é a reprodução dos ambientes cinzentos, carregados de sombras e algo claustrofóbicos, sugeridos pela fotografia de Florian Hoffmeister, que assim recria o nevoeiro denso da cidade de Londres. Mas, metaforicamente, exprime também a opacidade da política externa inglesa e até o estado de espírito da protagonista, alvo de uma pressão indecorosa por parte das autoridades. Valeu-lhe a convicção com que sempre sustentou a sua desobediência cívica, certa de trabalhar, antes de mais, para o povo britânico e menos para Governos que avançam para uma guerra com argumentos fabricados, privando o público de informação nevrálgica para o exercício da democracia.

Nos meandros dos tribunais, impressiona o circuito labiríntico e humilhante a que o réu é sujeito até chegar à sala de audiências, onde desemboca depois de subir umas escadas estreitas e íngremes, parecendo insinuar-se que está reduzido aos bas-fonds e é dali que acede ao lugar de luz onde terá de se submeter aos que têm poder para ditar o seu futuro. Tudo isto percorreu K.Gun com firmeza, apesar do medo, sabendo-se apoiada por um óptimo advogado, jornalistas profissionais e com sentido ético (à cabeça, o ‘Observer’).  

Já na sala de audiências, em ambiente enclausurado, como uma proscrita perigosa.

O jornalista herói, que cumpriu com zelo a sua missão de informador e escrutinador do poder.

A cereja em cima do bolo, que também a favoreceu, foi o calendário eleitoral, que desaconselhava produzir “mártires” face a uma opinião pública maioritariamente contra a aventura belicista no Iraque. 

Diz o lema do filme – «nothing is more dangerous than the truth» -- para colocar a tónica no preço que verdades incómodas costumam ter. Isso mesmo testemunhou, um par de milénios antes de K.Gun, a comitiva de magos que se deslocou até uma gruta das franjas do Império Romano, no Médio Oriente, esquivando-se à fúria predadora do rei da região, chamado Herodes. O mesmo preço da verdade sentiram na pele vários dos que passaram pela mesma  gruta, começando logo pela ferocidade de um poder cruel, que ordenou a matança das crianças da região, até aos 2 anos de idade. Todavia, é no meio das maiores desventuras e iniquidades que também se vêem surgir gestos heróicos, de quem se recusa a ceder a leis e poderes iníquos. Calha a cada um segundo a sua condição e, na forma especialmente discreta da Mãe do Menino da gruta de Belém, tornou-se o expoente do ponto de luz em tempos conturbados. Logo calha ser hoje uma das suas festas, sempre inspiradoras.  

Maria Zarco 
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) FICHA TÉCNICA
Título original: OFFICIAL SECRETS
Título traduzido em Portugal: SEGREDOS OFICIAIS
Realização: Gavin Hood
Argumento: Sara e Gregory Bernstein, Gavin Hood
Produzido por: Ged Doherty, Elizabeth Fowler e Melissa Shiyu Zuo
Fotografia: Florian Hoffmeister
Banda Sonora: Paul Hepker e Mark Kilian
Duração: 1h52
Ano:        2019
País: UK e USA
Elenco:
Keira Knightley – a protagonista, agente secreta dos serviços ingleses
        Adam Bakri – marido da agente secreta
        Ralph Fiennes – o advogado de defesa Bem Emmerson 
        Matt Smith - jornalista do Observer Martin Bright
        
        George W. Bush – o próprio
        Tony Blair – o próprio 

Local das filmagens: Inglaterra – Yorshire, a vila de Boston Spa e Manchester (para simular Londres). 

Prémios (a maioria, em 2019-20): Ganhou o 1º lugar do The Cinema for Peace Award for the Political Film of the Year, Melhor Argumento pelo festival Provincetown International Film Festival; eleito pelo público o Melhor Filme Estrangeiro no Traverse City Film Festival; Melhor Actor Secundário para Raloh Fiennes no Film Club’s The Lost Weekend e recebeu nomeações para festivais importantes da área política como o Political Film Society dos EUA e o National Film Awards britânico. 

Trailer:

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