Retomo, em tempos de pandemia e quarentena, a leitura de Imagens Imaginadas, de Pedro Mexia (Tinta da China, 2019). Em Momentos Kodak (pg. 100) é citada Nancy Martha West, autora de Kodak and the Lens of Nostalgia (2000):
"As pessoas que tiram fotografias rápidas usam a fotografia como forma de evitar, e até de negar, as memórias dolorosas, nomeadamente a memória da morte de uma pessoa amada. Tiram quase exclusivamente fotos de momentos felizes, e usam essas fotos como modo de reconstruir a sua história através da narrativa de prazeres e afectos 'intemporais', tentando assim consagrar um futuro não maculado pelo sofrimento, e no qual nos lembramos de momentos em que de algum modo escapámos ao sofrimento e à perda."
Calhou começar a dedicar-me à fotografia de uma forma totalmente amadora (por oposição a experiente, e não a profissional) quando os meus filhos eram crianças. Apesar de haver muitas fotografias banais, de momentos familiares - na praia, numa festa, em férias - o meu prazer consistia em fotografar-lhes os rostos de perto, (quase) sempre com chapéus de adultos, como se transpusesse para eles um gosto (que eles não tinham) e que eu não conseguia satisfazer. Era um tempo, ainda, de felicidade, manchado apenas por trivialidades - um dente partido, uma amigdalite, um febrão extemporâneo. Também nesse tempo, e no decurso de viagens, fotografei muitas paisagens - fotografias normalmente desinteressante, para não dizer más. Não há uma originalidade, um pormenor, uma perspectiva. Tudo, ou quase tudo, poderia ser substituído sem mágoa por postais ilustrados.
Deixei de fotografar rostos há muito tempo: os meus filhos cresceram, e a dimensão de lazer - ou desejo de registo para memória futura - já não faz sentido. As crianças já são outras, são os filhos deles, que eles fotografarão como entenderem, com ou sem chapéu, provavelmente de telemóvel. Continuei, contudo, a dedicar-me à fotografia sempre na dimensão amadora isto é, inexperiente. Como penso já ter dito aqui neste estabelecimento, o meu prazer fotográfico vai agora maioritariamente para os ambientes urbanos: o reflexo de um prédio espelhado, a perspectiva de um claustro, uma assimetria - ou talvez uma simetria - a nota dissonante de um gordo em frente a um ginásio ou de uma anoréctica numa montra pejada de éclairs. Paisagens também, com outra qualidade, confesso.
Será que Nancy Martha West tem alguma explicação para esta mudança, ou encolheria os ombros, como se faz perante uma banalidade que não merece atenção? Talvez, segundo ela, eu tenha tentado reconstruir a minha história, desejando consagrar um futuro não maculado pelo sofrimento, o que claramente não consegui, ainda que por motivos extemporâneos. Agora procuro olhares sobre a urbe, já não sobre as pessoas, forçosamente transitórias. Talvez seja o desalento, talvez seja um desejo de fixar espaços que são, pelas circunstâncias, mais perenes. Ou talvez não seja nada disso, o que é mais provável.
JdB
* publicado originalmente a 16 de Março de 2020
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