AUSCHWITZ (I)
No início de Janeiro de 2000, visitei os dois(1) principais campos de Auschwitz: quer o antigo complexo industrial polaco transformado em Campo de Concentração, quer o novo campo Birkenau, celebrizado em filmes e de imediato reconhecível pela tenebrosa linha do caminho-de-ferro, onde gente amontoada em vagões de carga era despejada, para ser eliminada. Logo que ficava vazio, o comboio voltava a rumar a outras cidades europeias, para recolher mais vítimas. Inacreditavelmente cruel!
Birkenau |
O frio cortante naquela planície branca forrada de neve gelada, brilhante e linda, pontuada por árvores esguias de copas verdes e lustrosas, matará em poucos dias os mais débeis. Menos 15ºC é difícil de suportar com agasalhos, fará com aquelas fardas de tecido ralo e frágil. Alguns sobreviventes relatam que o calor asfixiante dos meses de Verão seria ainda mais intolerável, pois a sede devorava-os.
A paisagem sóbria e altiva em redor de Birkenau não condiz com o inferno ali vivido. Parece afrontosa aquela beleza tranquila num lugar de morticínio. Igualmente imprevista é a quadrícula bem arrumada das casernas de madeira alinhadas geometricamente, com boas proporções e separadas por arruamentos arejados e simétricos, que lembram um retrato vivo dos acampamentos romanos imortalizados na banda desenhada de Goscinny. Só as fotografias de cadáveres dentro dessas casernas e de alguns sobreviventes famélicos junto às portas, não deixam dúvidas sobre as monstruosidades infligidas num sítio calmo e agradável. A clamorosa divergência entre o espaço exterior pacato e a actividade clandestina ali perpetrada dá bem a dimensão do que é a mentira, na acepção mais profunda e tenebrosa, ao esconder sob uma exterioridade inócua (por vezes até atraente) uma realidade pérfida, sempre obscura, sempre avessa a mostrar-se à luz do dia.
Em contraponto ao célebre e descarado embuste exibido no portão de acesso aos Campos nazis – «Arbeit macht frei» (o trabalho liberta) – outra mensagem foi acrescentada pelos Aliados, para memória futura – a frase atribuída a George Santayana «THOSE WHO CANNOT REMEMBER THE PAST ARE CONDEMNED TO REPEAT IT». Evitar a repetição de tamanho genocídio é o objectivo principal de preservar estes vestígios de crimes com mais de 80 anos.
É curioso e significativo ter vindo dos aliados anglo-americanos o maior empenho em assegurar o levantamento fotográfico do que restou de Auschwitz, para servir de prova às gerações futuras. E doi constatar a noção de iniquidade que os guardas prisionais teriam do seu trabalho, pelo esforço titânico em destruir o máximo de provas, i.e., de estruturas do Campo, para camuflar o que ali se passara. Quando o Exército Vermelho franqueou as portas de Birkenau encontrou sobretudo ruínas, a começar pelas dos fornos crematórios, cuidadosamente escaqueirados pelos nazis. O maior foi mais tarde reedificado pelos Aliados ocidentais, como testemunho histórico, Mas o forno mais pequeno, onde ardiam os documentos de identidade das vítimas, mantém-se um amontoado de ruínas calcinadas. Para cúmulo das ironias e da crueldade, as tropas estalinistas tinham ordem para levar presos para a URSS quantos encontrassem com vida, desde os alemães aos pobres cativos.
Nos anos 80, tinha visitado o primeiro Campo de Concentração do regime de Hitler, estabelecido em Março de 1933!, perto de Augsburg e Munique – Dachau. Destinava-se sobretudo a prisioneiros alemães de diversas condições, especializando-se em opositores políticos e, mais tarde, também judeus (cerca de um terço dos aprisionados). Apesar de horrível, não parecia tão sombrio quanto o campo polaco, cuja libertação teve lugar há 80 anos, no dia 27 de Janeiro.
Se tentasse uma súmula pessoal sobre Auschwitz, lembraria a personificação da mentira que impregna e ressalta subtilmente daquele conjunto, adivinhando-se estar no epicentro do mal ali urdido, entre 1941 e 27 de Janeiro de 1945. Lembraria também o equívoco comum de achar que apenas judeus pereceram em Auschwitz, sendo verdade que aqui foram assassinados às centenas de milhares. Mas além da Cruz de David, mais 8 insígnias eram usadas para diferenciar outras categorias de condenados, como os opositores políticos, em geral, os comunistas em particular, os ciganos, os russos (onde também se misturavam comunistas e judeus), os polacos (sobretudo do clero), os homossexuais, os deficientes, etc.
Terminada a visita, que foi um murro no estômago, dei-me conta da providencial semelhança das lágrimas com a água salgada dos mares do planeta, pois não há lágrimas suficientes para chorar tanto sofrimento. Felizmente, que quatro quintos da superfície terrestre são oceanos e lagos, que lavam, purificam, choram e exorciza por nós os excessos malignos.
Lembraria ainda que aquele vestígio de horror, situado nas imediações da magnífica cidade de Cracóvia, persiste apenas como símbolo. E só cumprirá a sua função de alerta, se tivermos consciência de que a(s) Auschwitz(s) da actualidade se deslocou para outras paragens. É essa que urge denunciar e desactivar!
Talvez o que mais me impressione em Auschwitz e nestes campos de morte seja a capacidade de alguns cativos em vislumbrarem brechas de Esperança e, no limite, de significado numa experiência de inferno. São incontornáveis os testemunhos de grandeza e magnanimidade de Etty Hillesum ou de Maximiliam Kolbe ou de Edith Stein, entre outros, que conseguiram encontrar uma réstia de Amor luminoso e restaurador na e para lá da mortandade que os cercava. Como foi possível não se deixarem submergir?
Em múltiplos sobreviventes, já todos de provecta idade, sobressai uma coragem e uma vitalidade contagiantes. Um grupo de francesas recentemente entrevistadas pelo Paris Match lembravam o canto militar tradicional gaulês, que lhes deu ânimo. Conhecido por «Chant des marais» foi rebaptizado pelos judeus para «Chant des Deportés». É tocante o volte-face positivo da estrofe final da letra, depois de um longo percurso de luta e de resistência contra um sem-fim de adversidades:
Todavia, o expoente de bondade na abominação dos Campos de Extermínio, seria encontrar o Perdão das vítimas aos algozes! E encontrou-se, por sinal, junto ao corpo de uma criança morta no Campo de Ravensbruck (Norte da Alemanha), que vitimou perto de cem mil mães e filhos. A mensagem é um supremo acto de perdão e espalhou-se pelo mundo sob a designação de «Ravensbruck Prayer»! Que maravilhoso ser humano terá sido o seu provável autor, de tenra idade e já dotado de uma vontade sobre-humana de perdoar, muito para lá do que está ao alcance da humanidade, pelas suas forças. A oração é um autêntico milagre de plenitude e de elevação humanas, comovente e deslumbrante:
Remember not only the men and women of good will
Also those of ill will.
But do not only remember the suffering they have inflicted on us.
Remember the fruits we have brought,
thanks to this suffering – our comradeship, our loyalty, our humility, the courage, the generosity, the greatness of heart which has grown out of all this.
And when they come to judgment,
let all the fruits we have borne be their forgiveness.
Amen»
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
____________________
(1) Havia um terceiro campo, mais distante – o Auschwitz III ou o “Monowitz” – onde funcionavam as fábricas, que laboravam com mão-de-obra escrava, assegurada pelos prisioneiros mais robustos. Eram poupados à câmara de gás para produzirem borracha sintética e outros produtos úteis ao esforço de guerra nazi. Muitos dos sobreviventes provêm deste grupo, como é o caso do filósofo Elie Wiesel.
Sem comentários:
Enviar um comentário