14 fevereiro 2025

Da tristeza do mundo

Começara a nevar outra vez. Olhou ensonado para os flocos prateados e escuros que caíam obliquamente no campo luz do lampião. Era chegada a hora de empreender a sua viagem para ocidente. Sim, os jornais tinham razão: nevava em toda a Irlanda. A neve caía em toda a parte da escura planície central, nas colinas despidas de árvores, caía suavemente sobre Bog of Allen e, mais para o ocidente, caía levemente sobre as ondas escuras e tumultuosas do Shannon. Caía, também, em todos os pontos do cemitério solitário na colina, onde Michael Furey estava Sul sepultado. Amontoava-se, espessa, nas cruzes e lápides tortuosas, nos espiões do pequeno portão, nos estéreis pinheiros. A sua alma desfalecia languidamente enquanto ele ouvia a neve cair suavemente em todo universo e cair suavemente, como a descida do seu fim verdadeiro, sobre todos os vivos e os mortos.

James Joyce in Os Mortos

***

Recebo informações provenientes de pessoas que me são próximas, ainda que recentemente, relativamente ao estado crítico de uma criança que, parece-me, terá 3 anos. Nenhuma pergunta que se faça tem, em bom rigor, o menor interesse. Saber porquê, como e quando aconteceu, tem a dimensão das coisas irrelevantes. Falamos de uma criança de três anos que morrerá de uma condição súbita e estranha que a atirou para esta situação. Não foi um acidente estúpido, a incúria de um automobilista, a queda de uma árvore no decurso de uma brincadeira. 

Na véspera destas terríveis notícias eu entrevistara Pais que perderam filhos para o cancro, no âmbito do meu doutoramento. Numa das últimas conversas com estes Pais enlutados, ao perguntar-lhes a motivação para falarem de um tema doloroso durante 2 horas, uma mãe disse-me: queria estar presente para olhar para si e perceber como se sobrevive quase 24 anos à morte de uma filha pequena. Eu achei que não se conseguia

Não consigo deixar de relacionar tudo isto: o meu próprio caso, o caso do Pai (de quem eu gosto muito) desta criança, dos Pais que entrevistei e que lutaram durante dois, três, cinco anos contra uma doença traiçoeira para depois verem os filhos morrer, alguns em sofrimento. O que se diz a estes Pais? Quais as palavras ideias para os confortar naqueles momentos tão difíceis, que permanecem difíceis ao fim de anos? Para os que são crentes, como não repetir a frase do Papa Bento XVI em Auschwitz: onde estava Deus naqueles dias? Um dia destes, quando for mais oportuno, escreverei a este Pai que perderá a filha em breve. Com que palavras se dá um abraço, sabendo que nada reduz este desgosto?

Há um movimento internacional que pretende acabar - e parcialmente muito justamente - com as metáforas associadas ao cancro infantil: heróis, luta, guerreiros, vencer, armas. Quer-se que a linguagem seja mais neutra e que, ao referir-se aos que vencem a doença como heróis, não ponha uma carga tão negativa sobre os que não venceram (outra metáfora) a doença. Mas ontem, ao falar com alguém sobre este tema, só consegui dizer: até ao final da semana a criança terá partido. Como é que se associa morte e criança de três anos se não recorrermos a uma metáfora?

Quando esta criança partir, o mundo ficará seguramente mais triste. 

JdB    

 

2 comentários:

Francisca Castelo Branco disse...

Fiquei (ainda mais) sensível, relativamente às mortes prematuras. Às de crianças então, nem sei o que chamar....
Não sei se conheço esses Pais, ou não e também não interessa. Mando lhes um enorme abraço!

JdB disse...

Obrigado, Francisca. Não conhece estes Pais, o que não signifique que não se mande um abraço virtual e solidário.

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