12 fevereiro 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 AUSCHWITZ (II)  E BRUCKNER

Daqui a semana e meia, na Sexta-feira 28 de fevereiro, às 19h00, a Gulbenkian passará em sinal aberto, nas suas plataformas digitais, o concerto com a Sinfonia n.º 7 de Anton Bruckner (1824-1896) e o «Prelúdio e Morte de Isolda» de Richard Wagner – o compositor alemão preferido do Führer.  

Nascido numa aldeia austríaca, Bruckner também foi instrumentalizado pelo nacional-socialismo, para servir de prova à propalada superioridade artística (entre outras) da raça ariana e do mundo germânico, que costumava apresentar a Áustria como uma extensão natural da Alemanha. É bom lembrar que Hitler era austríaco e que a maioria dos seus compatriotas acolheu com entusiasmo a integração do seu país no III Reich. O Capitão von Trapp, da «Música no Coração», é uma excepção.  

Anton Bruckner retratado pelo pintor A. Miksch, em 1893.
Exposto na Gemäldegalerie © Stift St. Florian. Copyright © Stift St. Florian.

Diferentemente de Wagner, que era antissemita professo e militante da supremacia germânica, a instrumentalização política de Bruckner foi totalmente abusiva e injusta, com descaradas deturpações da sua biografia, para caber no ideário nazi. Ao contrário de Wagner, o austríaco sempre foi um artista cordato e respeitador de todos. Mas o seu sucesso e o notável contributo para o desenvolvimento da música moderna – inspirador de uma geração de ouro, que abrangeu Mahler, Schoenberg, Karajan, Paul Hindemith, etc. – tornaram-no num alvo apetecível da maquiavélica máquina de propaganda de Goebbels. Pesou também o gosto de Hitler pelo compositor. Segundo os diários de Goebbels, o Führer identificava-se com o seu conterrâneo músico, elogiando o facto de representar «o camponês que conquistara o mundo com a sua música». Convém lembrar que Hitler fora um aguarelista fracassado, que chumbou na candidatura à Academia de Belas Artes de Viena. 

Deste modo, ao sabor dos gostos de Hitler, Bruckner converteu-se numa das figuras de proa do universo pangermânico e, alegadamente, também uma vítima do bullying infligido pela burguesia judaica vienense, que não deixaria medrar o talento austríaco genuíno. Precisamente, a Sinfonia n.º 7 de Bruckner seria o expoente da marca germanófila omnipresente na cultura austríaca. Hitler declarara, depois de a ouvir: «Como pode alguém [continuar a] afirmar que a Áustria não é alemã? Há algo mais alemão do que esta nossa antiga tradição austríaca?»

Finda a Segunda Guerra Mundial, um neto do primeiro dirigente do Campo de Concentração Auschwitz-Birkenau descobriu na escola o papel sinistro desempenhado pelo avô Rudolf Höss (que já não conhecera) no extermínio de perto de um milhão de pessoas, muitas das quais apenas por motivos étnicos. Para acelerar aquela indústria de morte, Höss autorizara a introdução do Zyklon B nas câmaras de gás. 

Como a educação escolar alemã incluía visitas de estudo a algum Campo de Concentração, o pequeno Kai Höss pôde ter uma ideia do horror original, a partir da reconstrução feita pelos Aliados, no pós-guerra. Porém, só aos 17 anos o adolescente Kai conheceu em pleno as responsabilidades homicidas do avô, quando leu a sua autobiografia «Comandante de Auschwitz», escrita a pedido das autoridades polacas, em vésperas de ser executado. Nas palavras do neto ao jornalista Jonathon van Maren sobre o impacto daquele escrito: «É o próprio quem testemunha, com enorme detalhe, tudo o que fez. E é horrível a maneira tão fria, clínica e calculada como descreve o seu trabalho.»

Fotogr. de 1944: à esq. Richard Baer, à data Comandante de Auschwitz;
ao centro Josef Mengele, também conhecido (pelas piores razões) por “Anjo da Morte”;
à dta. Rudolf Höss, que dirigira Auschwitz de 1940 a 1943 [Universal History Archive].

Passado aquele embate difícil com um avô de passado criminoso, Kai seguiu o seu caminho, basicamente ateísta e hedonista, segundo o próprio. A grande reviravolta começou aos 28 anos, após uma cirurgia que correu mal, provocando-lhe uma hemorragia quase fatídica. Durante a convalescença, questionou-se sobre o rumo da sua vida e o sentido da procura desenfreada de prazeres materiais. Descobriu também uma Bíblia, onde leu um trecho marcante: o Salmo 51, sobre o arrependimento do rei David após ter mandado para a morte o general Uriah, para lhe roubar a mulher. Tudo isto lhe relembrou o avô, fazendo-o interrogar-se sobre a sua opção, se tivesse vivido naquele tempo e naquelas circunstâncias. Como teria reagido ao imenso poder que Hitler delegara em Rudolf Höss? 

Logo que teve alta do hospital, acabou por voltar à vida de sempre. Passados bons anos, conheceu numa festa um amigo cristão, com quem teve vontade de se abrir sobre as suas inquietações. Levado pelo amigo, Kai foi-se aproximando da Igreja e na Páscoa de 1989 converteu-se. Hoje, é Pastor da Igreja Evangélica de Estugarda, onde aproveita os sermões para partilhar a sua mudança de rumo, que ilustra a força do caminho pessoal e das infinitas oportunidades que a vida nos oferece.

Kai Höss num sermão na Igreja Evangélica de Estugarda. 

Mais recentemente, Kai Höss tem alertado contra algum antissemitismo, também exacerbado pela terrível sequência inaugurada pelo ataque bárbaro do Hamas contra Israel (7 OUT.2023), a que se seguiu a réplica militar continuada de Israel contra a Faixa de Gaza, o Sul do Líbano, regiões da Síria, sem se saber como irá terminar este conflito devastador.  

O que Kai não costuma partilhar é a reviravolta do avô, nos últimos anos (contada no “gin” de 14.Agosto.2024), tocado pela bondade dos guardas prisionais da Polónia, onde cometeu e foi cúmplice dos piores crimes de guerra. Esse tempo passado no cárcere polaco, antes de ser extraditado para ser julgado e condenado na Alemanha, mudou-o por completo.  Avô e neto comprovam quanto a vida é generosa em oportunidades, quando se procura com autenticidade.   

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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