15 maio 2009

não há muito a dizer - disse ele

a partir da última fila de cadeiras, a aula parecia sempre um filme em 'slow motion' - como se, ganhando vida própria, se fixasse numa permanente dúvida: fazer parte da realidade ou continuar numa espécie de limbo, algures a meio caminho entre realidade e ficção.

a. gostava de escrever e gostava da tensão agradável que aquelas aulas lhe causavam. um bocadinho à maneira das primeiras aulas do seu tempo de estudante-mesmo-estudante, o 'frisson' da descoberta de matérias, professores, colegas (ou da simples rugosidade táctil do tampo da mesa que lhe havia calhado em sorte dessa vez). anos depois, revivia interiormente essa espécie de fogo manso que teimava em persistir ('há coisas que serão sempre iguais' - lembrava-se perfeitamente deste pensamento recorrente).

o curso de 'filosofia holística' apareceu-lhe por acaso, na figura de um papelito colorido em que o seu olhar pousou, certo dia em que passeava vagarosamente pelas alamedas de granito da sua cidade. foi um passo até estar ali, sentada outra vez, menina-colegial de caderno por estrear bem espraiado à sua frente. a. era uma pessoa elíptica, viajava frequentemente entre dois pontos, pouco recordando da distância física ou temporal ou psicológica entre os dois. era o contrário de bruce chatwin, esse moderno nómada-escritor (ou escritor-nómada?) que, havia lido algures, proclamava a beleza essencial do hiato entre partir e chegar. era, pois, com uma naturalidade desarmante que se lembrava do papelito colorido, varrendo da sua memória coisas tais como telefonemas, propinas, e palavras (úteis mas inestéticas) como secretaria. o que lhe interessava era que estava ali, e que antes tinha estado lá. era tudo o que importava.

a meio desse dia, a professora de ocasião (monitora, dizia no plano do curso, afixado à porta da sala), pediu àquela dúzia de alunos (adultos em modo de 'search for a meaning' ou tão-só em intervalo entre dois estados de conforto) para fazerem um exercício especial: deveriam sair à rua e simplesmente seguir alguém durante um par de horas. registariam num caderninho, vermelho e discreto, que lhes foi distribuído, o mundo interior da pessoa que observassem - a partir do estímulo externo e visível, construíriam a identidade e o estado de alma. 'parecia fácil ou difícil ?' - perguntou a monitora-professora. ninguém respondeu.

algumas horas depois, de regresso àquela remediada sala de aulas, o grupo preparava-se para, em monólogos sucessivos, contar a história e as estórias dos sujeitos que, por um acaso (por certo), cada qual havia seleccionado como 'objecto de estudo'.

a. falou então. contou a história de um homem, sózinho numa esplanada, com um jornal aberto numa estranha diagonal, bebericando um café (parecia-lhe, que a distância era grande) e escrevinhando num bloquito, de quando em vez. por vezes, tinha a sensação de o homem fazia vôos razantes com o olhar, uma espécie de 'travelling' sincopado. 'procuraria algo ?' - pensou, mais do que uma vez.

a. continuava a sua exposição, perante uma turma visivelmente interessada. era um homem de meia-idade, solitário. um homem ainda não velho, e já não claramente novo. um homem que, por entre notícias de algibeira, fazia o balanço da sua vida, como se procurando um ângulo que, improvavelmente, lhe revelasse um sentido. a. descobriu-lhe uma biografia sumária, mas impressiva - 'um homem na cidade', lembrou-se desse título de romance de um autor português pouco na moda. a. ia falando com desenvoltura crescente, alguns colegas comentaram entre si que parecia mesmo que a. acreditava na estória que estava a contar.

semanas depois, numa outra aula do mesmo curso, a monitora-professora, pediu à mesma dúzia de alunos que fizessem um novo exercício prático. desta feita, munidos de um jornal e de um cadernito preto que lhes foi distribuído, deveriam sentar-se numa esplanada próxima - havia dezenas de esplanadas próximas - e procurar alguém que, com um cadernito vermelho entre mãos, parecesse observar fixamente alguém ou alguma coisa (quem sabe, eles próprios). deveriam, a partir do que viam, inventar uma 'persona', uma 'vida'. e deveriam escrever, a partir daí, sobre o que estaria escrito no tal cadernito preto, a partir daquilo que agora sabiam e daquilo que ainda não sabiam.

a. sentiu-se zonza. observador-observado, caçador-caçado, 'o homem como lobo do homem' (das velhas aulas de ciência política), tudo lhe sobreveio e ao mesmo tempo. afinal, semanas antes, enquanto observava era observada; enquanto inventava era inventada. e essa sua biografia alternativa estaria algures, apontada (e corrigida, afinada, riscada por certo em trechos) no caderninho de um homem de meia-idade que, por um acaso certo, se tinha inscrito num curso similar algumas semanas antes. sentiu-se estranha. sabia que era justa essa espécie de reciprocidade, mas agora pagava, literalmente, para ter acesso ao cadernito dessa homem a que chamou 'um homem na cidade'. afinal, talvez ele a tivesse re-inventado e nesse processo a tivesse tornado uma mulher feliz.

estava nestes pensamentos, havia ficado para trás na azáfama da saída da turma para a rua, quando a professora-professora a interrompeu, tocando-lhe levemente no braço. 'se estava tudo bem ?' - perguntou -; 'que não se assustasse com os exercícios, faziam parte de um processo a que se chama 'a alteridade em mim', que era normal a surpresa' - acrescentou.

a. não conseguiu evitar perguntar sôfregamente 'professora: o que disse aquele homem sobre mim, o homem que eu observei, e que agora, vejo-sinto-sei, me observava a mim ?'.

a professora-professora sorriu, daquela forma maternal que só uma professora-professora sabe sorrir, e respondeu: 'sabe, a., as regras éticas não me permitem entrar em pormenores, seria contra a deontologia da minha profissão. mas anos e anos a ensinar filosofia holística ensinaram-me que não existe uma ética da felicidade, existe um imperativo da felicidade. e esse imperativo diz-me que lhe devo mostrar aquilo que estava escrito no cadernito do seu, digamos, colega'. tirou então de uma gaveta uma folha quase em branco que dizia:

'cara professora, no momento em que escrevo, observo uma rapariga que me parece observar a mim. reparo no cadernito (que reconhecço) sobre o seu colo, vejo-a perfeitamente fazendo de mim - em espelho -, umas semanas depois de eu ter estado ali. invento-lhe uma história, uma vida, uma biografia ? ou simplesmente encontro o seu olhar ? vou inventar-lhe uma história, está decidido. chama-se ' uma mulher na cidade' - assim mesmo, sem ponto final. é uma história que, em vez de falar do passado, fala de futuro. talvez este futuro comece daqui a umas semanas ou daqui a uns meses. mas ela ainda não sabe, porque ainda não pode saber.
peço-lhe, cara professora, que lhe mostre estas palavras, quando achar que é o tempo certo. ela que faça delas o que quiser, mas que note bem que é ela própria que está nelas. e, de certa forma, um seu futuro.
sei que a desiludo ao abandonar aqui o curso - não era minha intenção que a vida entrasse pelo curso dentro, assim desta maneira.
respeitosamente, nome ilegível'

a. releu as palavras a uma velocidade vertiginosa. em micro-segundos as letras estavam já incrustadas em si, poderia repeti-las numa lenga-lenga contínua, que não se equivocaria numa palavra, na pontuação, (quase juraria) na entoação.

a. queria saber quem era aquele homem de meia-idade. parecia-lhe, de repente, que era a única coisa que importava. a professora-definitivamente-professora, sorriu para si, daquela forma discreta que distingue a aristocracia da alma de outras nobrezas mais pedestres. disse-lhe baixinho 'a., tome o seu tempo; se e quando quiser, escreva qualquer coisa. eu cuidarei de fazer chegar as suas palavras ao destinatário certo'. a. pegou numa esferográfica barata e escrevinhou'

o meu nome é a. li a sua mensagem, tal como a fez chegar à (nossa) professora. estarei na esplanada de sempre no próximo sábado. traga os caderninhos vermelho e preto, por favor. eu levarei os meus. até lá. a.'

no sábado seguinte, cedo, alguém observava, a uma distância segura, duas pessoas (homem e mulher mais jovem) numa esplanada que ainda bocejava. num caderninho de capa vermelha, lutava consigo para interpretar os estímulos exteriores de um par e, a partir deles, inventar uma história de amor (tinha sido esse o desafio proposto na sala de aula). como quem observa pássaros - sabendo que tem que saber esperar mas que vale sempre a pena esperar -, registou uma dança curiosa: por entre chávenas de cafés e jornais matutinos, aquele homem e aquela mulher pareciam trocar entre si uns livrinhos pequeninos e coloridos. reparou especialmente quando ele tocou no cabelo dela, porque nesse momento lhe pareceu que o azul do céu estava - coisa infantil! - mais azul.

horas depois, de frente para os seus onze colegas de ocasião e perante uma professora-professora, contou a sua história, a história deles - aquele homem e aquela mulher, sob o céu de inverno.

disse:
'chama-se: nesta cidade';
e continuou:
'não há muito a dizer sobre a maior parte das grandes histórias de amor'.

fechou o cadernito e saiu porta fora. o céu de inverno continuava azul, profundamente azul, como se fosse verão. verão ali e agora, verão aqui e agora, verão agora, verão aqui. verão para sempre.

gi

2 comentários:

Anónimo disse...

Bonito e enigmático. Não sei porquê, "vi" esta cena na Av. dos Aliados, no Porto. Nos cafés cá de baixo. Um intelectual grisalho e uma rapariga/mulher de cabelos ondulados escuros a reflectirem-se mutuamente ... que é o que acontece entre pessoas que se apaixonam. Muito bonito. pcp

a. disse...

não há muito a dizer...- disse ela

na sua forma elíptica de desvalorizar pormenores inúteis, e valorizar nos hiatos pormenores especiais

...sonhar verão, reinventar verão, ensaiar verão, improvisar verão, pintar verão, cheirar verão, sentir verão, criar verão...sob céu de inverno, e afugentar a invernia (ainda que bela e nostálgica) que se infiltra nos ossos e alastra pela alma.
verão para sempre.sob um céu muito mais azul.
...



'és um prosador do caraças'

a.

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