14 maio 2009

O azul dos dias tristes

A noite, à primeira vista igual a tantas outras que já tinha passado na rua, tinha hoje um frio diferente. Chegava aos ossos. Puxava-os e estilhaçava-os sem cerimónia. Enrolado sobre si mesmo, não conseguia ver o fim da rua devido ao vapor que lhe saía da boca. As pontas dos dedos tinham uma cor estranha, parecida com o azul cinzento do ocaso dos dias tristes.

Puxava para cima um pedaço de pano que mal lhe tapava os ombros, na esperança que dali viesse um calor que queimasse o nariz e as orelhas. Mas não vinha, e o frio crescia cada vez mais à sua volta.

O único conforto que tinha era a companhia do cão. Para além de dormir sempre na rua, ele era a única constante na sua vida. Nunca o tinha abandonado, por maior que fosse o desconforto, por mais intolerável que fosse o frio ou por mais desesperante que fosse a fome. E ele não se esquecia disso. O pano tapava-os sempre aos dois, e o pão de cada dia era dividido irmãmente. Falava com ele, e tinha a certeza de que o cão ouvia e percebia cada palavra que lhe confiava. Nas horas em que o desespero lhe apertava mais o coração, em que a solidão tinha na alma o peso do mundo, era o fiel cão que lhe lambia as lágrimas que desciam pela cara.

Mas, naquela noite mais fria que todas as outras que já dormia, nem o focinho húmido do cão lhe conseguia oferecer qualquer conforto. Parecia uma estátua, imóvel e gelado como a pedra sobre a qual dormia. Ele puxou-o mais para si, pô-lo ainda mais debaixo do pano que o cobria.

Desde sempre que o seu lugar de sono era a pedra do átrio de uma velha Igreja. Estava abandonada, entregue a si própria. Nunca tinha visto ninguém ali deixar uma Ave-Maria ou um Pai-Nosso. O Santíssimo não morava no tabernáculo que encimava o altar. Esse estava sempre despido, vazio. As velas já tinham todas ardido até aos pés, e os santos, de olhos fechados, dormitavam cada um no seu nicho.

As únicas orações que a velha Igreja ouvia eram as dele. E mesmo essas, sabe Deus, apenas eram feitas em alturas de maior aperto. Balbuciadas entre dentes, sem qualquer organização ou verdadeiro sentido. Mas, nessa noite fria, sentiu que o que rezava tinha outro fervor

Ave-Maria,
Cheia de graça...

‘Talvez hoje Nossa Senhora me oiça’, pensou ele.

A cruz que lhe servia de cabeceira erguia-se, mais alta do que nunca, até ao céu. Deitado não lhe conseguia ver o fim... Tal como a noite que o levava, parecia não mais acabar.

Os anjos que decoravam o exterior da igreja olhavam-no de soslaio. Os que o conseguiam olhar, porque o tempo não tinha sido meigo com alguns. As feições redondas que os caracterizavam tinham sido apagadas a pouco e pouco, e sobravam agora na cara apenas uns ossos saídos e uns olhos encovados, sem vida.

Mas outros, mais escondidos da fúria do vento e das chuvas, tinham conservado toda a vida e todo o brilho, e os olhos despertos observavam atentamente tudo o que se passava de volta. Era a esses que pedia que o embalassem, que lhe secassem as lágrimas que caíam, geladas e pesadas, pela cara.

Sentia as forças transformarem-se em vapor a cada respiração, cada vez mais a custo. O calor do sangue tinha sido todo substituído por um frio cortante. Os dentes já tinham deixado de bater, e o resto do corpo, tendo-se apercebido da impossibilidade de se tentar aquecer, deixara de tremer. Jazia, imóvel, no frio das lajes que lhe serviam de colchão e de almofada.

Olhou para o cão adormecido a seu lado. Tentou chamá-lo, mas este não o ouviu. Abanou-o e ele não respondeu. O focinho húmido estava agora frio e sem vida. Os olhos estavam fechados, e já não os abria mais.

Sentiu, pela primeira vez, o peso esmagador da solidão e não tinha quem o aliviasse. Deixou-se adormecer, tal como o cão. E nesse momento, viu os anjos voltarem-se para ele. Sentiu uma asa tapá-lo. Não de pedra, mas uma leve e quente. E pôde, por fim, fechar os olhos, e adormecer embalado pelo bater da asa.

π

2 comentários:

cris disse...

M,
Lição de vida sim.
É verdade sim, que os animais são os nossos melhores amigos.
O cão em especial, dá a vida por nós, não nos cobra nada.
Os cães dão-nos momentos de felicidade únicos, presentem o nosso estado de espírito, ajudam-nos na doença.
Quando um cão abana a cauda, diz-se que está a sorrir.
Este desta estória deu tudo, até deu o mote ao dono que estava na altura de partirem.
Partiu ele primeiro, pois foi abrir o caminho da felicidade ao seu dono.
Foi buscar as asas quentes.
Só alguns preveligiados é que têm amigos assim.
Parabéns.

a. disse...

Pi,
triste e verosímel este texto, e admirável e comovente a forma como empaticamente se colocou no lugar do outro e descreveu os seus derradeiros momentos

um retrato de muitos no mundo que vivemos
a morte como consolo, como alívio

a.

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