29 setembro 2009

Cemitério de barcos

I.

Pudesse eu levar
Uma mão cheia de areia,
E outra cheia de mar,
Para que quando desaparecer
Para nunca mais voltar
Possa mais um dia cheirar
A praia que me viu nascer

II.

Há quem lhe chame cemitério. Aqui, os barcos não navegam. Ficam parados, a verem-se ao espelho da água. Não estão à espera de nada nem de ninguém. Estão só parados, mortos.

As redes foram arrumadas à cabeceira, os remos cruzados sobre as traves e os nós foram todos desatados das cordas. E é assim que ali ficam, para sempre.

Percebe-se que lhe dêem este nome. Estão lá as lápides com os nomes de quem ali conheceu a última casa terrena. Mas estas, ao contrário do mármore escuro e frio, são as madeiras dos barcos, ainda quentes do sol e roídas pelo sal, pintadas a cores de aguarela.

Não há flores, mas há conchas. Não há cheiro a árvores e a Outono, mas cheira a maresia. E, como em qualquer outro cemitério, o silêncio aqui é mais do que a simples ausência de barulho. Aqui, o silêncio é o som dos dias sem vento e sem sol. É a música das noites com estrelas e sem lua. Mesmo as ondas que embalam os barcos rebentam na costa sem qualquer som.

E naquelas rochas há um ponto que sobe mais alto do que os outros, e de onde se vê o mar até ao outro lado. Foi daí que se disse o último adeus aos barcos, e é aí que as gaivotas pousam e ficam paradas a ver o horizonte.

E cada vez que passo por aqui, ao olhar para este repouso, pergunto-me para onde vão os barcos quando são aqui sepultados. Porque o casco fica, mas o resto não...

SdB (III)

2 comentários:

Anónimo disse...

que belíssimo texto, SdB! a sensação de desolamento, de ermo, que transmite é poderosíssima, conseguiu apanhá-la completamente. pelo menos aos meus olhos. muitos parabéns. pcp

Inês disse...

Adoro. Inês

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