25 outubro 2010

Vai um gin do Peter’s ?

Encerra-se com este texto a trilogia de gins(1) dedicados a grandes escritores entrevistados pela mítica revista «The Paris Review». Hoje calha a vez a Boris Pasternak (1890-1960, Rússia).

O sucesso inicial de Pasternak deve-se, em parte, à erudição literária de muitos moscovitas, que reconheceram, logo nas primeiras obras publicadas, no limiar dos anos 20, o mérito artístico do jovem poeta. Aliás, Pasternak testemunha-o na entrevista: «Impressiona-me constatar até que ponto a poesia parece fazer parte da vida quotidiana dos russos… (Embora em 1960 denuncie o facto de se ter tornado) bastante circunscrita a um grupo de intelectuais

Ironicamente (ou talvez não, atendendo ao fortíssimo pendor político da Academia sueca), o romance que lhe valeu o Nobel, em 1958 – «O Doutor Jivago»(2) – foi proibido na Rússia, conseguindo esgueirar-se, em 1957, para a Europa. Por iniciativa do magnata Giangiacomo Feltrinelli foi publicado em Itália, o que valeu ao editor a expulsão imediata do Partido Comunista Italiano. Entretanto, a difusão por todo o Ocidente não se fez esperar e no ano seguinte o laureado com o Nobel converteu-se numa estrela fora da Cortina de Ferro.

O início de vida no seio de uma família judia abastada e de artistas – o pai pintor e eminente professor de Belas-Artes, a mãe pianista – deu-lhe a oportunidade de circular no meio intelectual de Moscovo, onde pôde privar com Tolstoi, Rachmaninoff, Scriabin e ainda o poeta checo Rainer Marie Rilke. Em 1917, a Revolução Bolchevique marcou o início de grandes reviravoltas, a nível pessoal e artístico, começando logo pela separação forçada de muitos amigos, que se refugiaram no Ocidente, temendo o pior. A partir daí, a sua actividade literária converteu-se num caminho penoso, até ao fim. Com a ascensão de Estaline ao poder (1929), sofreu pressões para substituir o seu estilo colorido e fortemente simbólico pelo realismo literário imposto pela nomenklatura.

As peripécias com o Nobel, que não pôde receber, demonstram a que ponto estava quartada a liberdade individual, mais ainda para os artistas que se notabilizavam para lá das fronteiras do sovietismo. Só a título póstumo, já em 1989, a Academia pôde entregar ao filho de Pasternak o prémio que lhe fora atribuído 21 anos antes! A seguinte correspondência (citadana língua original) é muito reveladora do que se passou:

- 23.Out.1958 – razão avançada pela Academia para a escolha: «for his important achievement both in contemporary lyrical poetry and in the field of the great Russian epic tradition»

- 25 de Out. – primeiro telegrama de Pasternak a aceitar, muito lisonjeado:

«Immensely thankful, touched, proud, astonished, abashed.»

- Entre 25 e 28.Out. – carta de Pasternak às autoridades russas, a defender a sua honra, atacadíssima na imprensa, e a justificar por que receberia o prémio, apesar de instado a recusá-lo:

«I think that one could write Doctor Zhivago while remaining a Soviet citizen, (…) I agreed to correct all unacceptable passages. The possibilities of a Soviet writer seemed wider to me than they are in fact. (…)
No one can force me to refuse the honor
shown to me, a contemporary writer living in Russia and, hence, a Soviet. But I am prepared to transfer the Nobel Prize money to the Committee for the Defense of Peace.
I don't expect justice from you. You can shoot me, exile me, do whatever you like. I forgive you beforehand. But don't be in a hurry. This will garner you neither happiness nor praise. And remember, in a few years you'll have to rehabilitate me all the same
(3). It's not the first time in your experience."

- 28.Out. – segundo telegrama de Pasternak à Fundação sueca, em face das retaliações exercidas sobre pessoas que lhe eram muito próximas:

«Considering the meaning this award has been given in the society to which I belong, I must refuse it. Please do not take offense at my voluntary rejection.»

É neste ambiente hostil que Pasternak concede uma entrevista memorável à The Paris Review, onde reflecte sobre o ser humano, a história, a arte. Apenas algumas considerações, como aperitivo do testemunho que nos deixou, precisamente, no ano da sua morte, em 1960:

«A grande devoção heróica a um ponto de vista é para mim muito estranha – é uma falta de humildade

Sobre O DOUTOR JIVAGO:

«Depois de tantos anos a escrever apenas poesia lírica e a traduzir, parecia-me ser meu dever fazer uma declaração acerca da nossa época – a respeito daqueles anos, distantes e ainda assim pairando sobre nós. O tempo escoava-se. Quis registar o passado e honrar (…) os aspectos belos e sensíveis da Rússia desses anos… prevejo que os valores deles serão recuperados. Tentei descrevê-los

Sobre a escrita:

- «A vida desenvolveu-se de um modo extremamente incómodo, extremamente complicado. Adquirimos valores que se exprimem melhor em prosa

- «Acredito que a prosa é o meio dos nossos dias… A obra de hoje deve recriar uma visão abrangente da vida

- «Quero escrever algo de panorâmico… Espero que as minhas peças venham a ser tão reais, tão carregadas de vida quotidiana como (Gógol)»

- «O teatro é a arte das emoções – é também a arte do concreto

- «As mais extraordinárias descobertas são feitas quando o artista é tomado pelo que tem para dizer. Usa, então, a velha linguagem nessa sua urgência e a velha linguagem é transformada por dentro. (…) Chopin usou a velha linguagem mozarteana para dizer algo completamente novo – a forma regenerou-se por dentro

- «O que é importante não é a precisão histórica da obra mas a recriação bem-sucedida de uma época. Não é o objecto descrito que importa, mas a luz que se derrama sobre ele…»

- «A grandeza de um escritor não tem nada que ver com o tema em si, mas antes com a intensidade com que o tema toca o autor. (…) Pelo estilo de Hemingway sente-se a matéria, o ferro, a madeira

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Segunda-feira)

_____________

(1) Os dois textos anteriores datam de 27 de Setembro e de 11 de Outubro.

(2) O termo «Jivago» significa «vida» em russo.

(3) De facto, depois de retirado da política, Nikita Khrushchev (NK) declarou-se arrependido pelo desfecho do processo, dizendo que tinha sido mal aconselhado, tanto mais que nunca lera o célebre romance. Note-se que mesmo depois de recusar o prémio, as autoridades quiseram expulsá-lo da URSS, levando Pasternak a escrever a NK : «Leaving the motherland will equal death for me. I am tied to Russia by birth, by life and work. Atribui-se à intervenção de Jawaharlal Nehru o facto de Pasternak ter sido poupado à prisão ou ao exílio forçado.

2 comentários:

Anónimo disse...

Um dos grandes romances da história da Literatura. Um grande homem e um grande pensador. O que escreve faz completamente eco em mim. Concordo com a questão do ponto de vista fixo sobre uma matéria ser uma falta de humildade, por exemplo. Mas gostava só de comentar a última frase, sobre a grandeza do escritor ter a ver com a forma como o tema toca o autor. As botas de Velasquez, pobres, abandonadas, desoladas, são o exemplo vivo disso mesmo. Em termos de impacto, é um dos quadros que mais "impactou" em mim. Por isso mesmo que o Pasternak diz. Não interessa o tema, mas sim a forma como se olha para ele. Belo post. As ever. Bjs. pcp

Anónimo disse...

O difícil com o Pasternak é apenas poder escolher um par de desabafos e reflexões entre um milhão de ideias interessantíssimas que ele transmite em jorradas. É impressionante lê-lo! Ainda por cima, ele tem autoridade para dizer o que diz, porq. algumas das suas declarações até podem ser polémicas e nada universais (precisamente, a primeira, sobre a falta de humildade de um ponto de vista que percorre toda uma vida; excluiria, por exemplo, um Gandhi; só que percebe-se lindamente q. no período conturbado que viveu --entalado entre a agonia do czarismo e a instauração do comunismo-- ele professe tal opinião, mais ainda por não ser nada cobarde). Bjs e obrigadíssima pelo teu comentário, sempre muito enriquecedor, MZ

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