23 janeiro 2013

Crónicas de um universitário tardio

Estou a três dias de entrar em férias de pós-graduação. Em cima da mesa (é uma metáfora) tenho três trabalhos para entregar, como já referi. 6ª feira terá de estar tudo nas mãos dos professores respectivos.  Uma nota, com um agradecimento especial a quem me tem ajudado nesta fase de revisão dos ensaios: tenho problemas de estruturação dos textos, isto é, falta-me uma planificação (ainda que mental) dos vários aspectos abordados. Significa isto que quem me leu disse com toda a propriedade: tudo o que deve ser abordado está lá, mas a ordem não é aquela... Podia ser uma opinião e eu não concordar. Mas concordo, porque lembro-me dos dois livros que escrevi, dos quais só um foi publicado. O meu computador estava cheio de ficheiros soltos - correspondentes a cada capítulo - que depois coloquei por ordem. Não é assim que se faz... Enfim, sempre a aprender.
Abaixo segue a parte final do texto que redigi para Escrita de Comédia. Deu-me trabalho? Nenhum. Levantei-me e, durante duas horas escrevi disparates (o subtítulo é 2,5 horas de disparate tântrico), sem atentar ao que quer que fosse. Se tem graça? Duvido, mas eu não sou um escritor de comédia, com mais facilidade escrevo dramas. Mas foi o que saiu, e aguardo com curiosidade o feedback do Ricardo Araújo Pereira.

*** 

(...) Todo este mundo me parecia suficientemente fértil, genuinamente português, intrinsecamente elevado, para rivalizar com o pastel de bacalhau, o tremoço e a imperial, o Eusébio e a sua Flora (ou a outra Flora, ainda que não a intestinal). O café era o primeiro elemento de um casamento perfeito com o capacho, esse artigo que os dicionários definem como tapete de esparto a que se limpa o calçado. Não há nada mais fascinante, quiçá mais estimulante, do que procurar uma definição e essa própria definição nos atirar para outra, num encadeado de procuras que revelam a nossa pequenez perante o mundo das significações corriqueiras. Tapete de esparto a que se limpa o calçado... Só por esta frase o capacho merecia uma direcção-geral, uma panóplia de funcionários diligentes que acarinhassem o produto e lhe dessem uma denominação de origem controlada.  Porque o capacho não é só isso, e a palavra encerra em si (prescindo que encerre em mim...) uma infinitude de outras ideias, pensamentos que geram outros, e que geram outros ainda, numa caminhada para o abismo do conhecimento. O capacho pode ainda ser (e repare-se nesta possibilidade ilimitada do ‘pode ainda ser...’) uma espécie de vaso cilíndrico, de esparto, onde se metem os pés para os aquecer.
A palavra capacho, proferida com o vagar e a solenidade que o termo exige, obriga a um trabalho lábio-lingual que está reservado aos beijos mais ardentes e húmidos. O capacho torna-se, assim, num artigo cuja vocalização o erotiza, o eleva à prateleira dos fetiches sexuais, o inclui no catálogo dos termos que suscitam fantasias onde anões, bombeiros, mangueiras e saias curtas de colegiais inocentes são apenas os primórdios de uma sensualidade perturbante.  Mas o capacho é mais, é algo que está reservado a uma minoria de palavras. Não só o termo arrebata, como a própria definição o faz também. Um exemplo que elucida, pela inversa. Amor é, segundo os dicionários, sentimento de afecto ou de extrema dedicação. Uma expressão corriqueira – o amor – para uma definição sem mistério. Atente-se agora no capacho (e só a repetição da palavra me inquieta) e na sua definição. Capacho: tapete de esparto a que se limpa o calçado. Ou ainda, espécie de vaso cilíndrico, de esparto, onde se metem os pés para o aquecer. Há o capacho – que só por si é um demónio a mexer-nos com as entranhas, a levar-nos aos pensamentos mais inconfessáveis. Mas há também a definição – algo que é de esparto. Não é barro, ouro, alcatifa, fibra óptica. É esparto, uma palavra mágica, funda, misteriosa, que abre portas às aventuras mais juvenis.
Tinha encontrado o meu tema: a bica e o capacho. Estava arroubado perante a criatividade, entusiasmado com o início da viagem do saber e do sentir. As palavras enrolavam-se na língua, humectavam a minha cavidade bocal, levavam-me ao revirar dos olhos como quem tem uma visão, um êxtase, uma epifania. Havia uma casamento perfeito nestas duas palavras tão genuinamente portuguesas. Um casamento perfeito, não só ao nível das significâncias, como ao nível da constituição da palavra. Bica tem duas sílabas, capacho tem três, o que só por si (e por mim também)  é um bom augúrio. Não sei porquê, mas parece-me um bom augúrio. O que dá a primeira sílaba de bica e a primeira sílaba de capacho? Pois dá também a palavra bica, o que me parece, de novo, um bom augúrio. Junte-se a primeira sílaba de capacho e segunda sílaba de bica. A conjunção dá caca, o que, à semelhança do avô cantigas, é a alegria da petizada. Há uma miríade de hipóteses, levando o cálculo combinatório (arranjos, permutas e combinações) ao esplendor. BI-CA; CA-PA; BI-CHO; CA-CHO. Ou mesmo inversamente: CHO-CA; CA-CA; CHO-BI (uma espécie de showbiz em versão tony silva). Bica e capacho. O casamento era perfeito, perpétuo, elucidativo, verdejante e concupiscente.

JdB

3 comentários:

ACC disse...

Adoro a palavra esparto.
Divertí-me porque é uma descontraída viagem a lado nenhum, visitando de tudo um pouco.
Bom dia JdB

Maf disse...

um "nonsense" pegado, mas muito bem escrito :-) Fartei-me de rir.
Obrigada por este momento de boa disposição.
Maf

Anónimo disse...

Muito giro!
Parabéns, bem esgalhado!
Beijinhos,
Rita

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