17 março 2014

Vai um gin do Peter’s?

Ter telas do Prado, em Lisboa, no MNAA(1),  é um luxo, apesar de não serem os melhores exemplares dos pintores flamengos em exposição, como diria ser o caso de Rubens, embora se tratem de obras da sua colecção pessoal. O tema em foco é «A Paisagem Nórdica do Museu do Prado», destacando-se os quadros dos dois Brueghels – o Velho e o Novo. Outros artistas da Flandres e dos Países Baixos estão também presentes, como: Claude Lorrain (que não é do gosto de toda a gente e até seja francês, por excepção incluído neste grupo do Norte), David Teniers, Joos de Momper, o Jovem, Peeter Snayers, Simon de Vlieger, Philips Wouwerman, H.Dubbels, Adam Willaerts, Hendrick Cornelisz Vroom e outros, sobretudo do século XVII. 

Seguindo uma lógica temática, a exposição foca a forma de os flamengos conceberem a paisagem, desenrolando-se por 9 núcleos, que se percorrem com gosto, se a expectativa for comedida. Talvez facilite seguir as etapas sugeridas, onde a luz glacial e suave de latitudes mais nórdicas são uma constante, a par da neve e do arvoredo denso e escuro.

I – A Montanha
A linha de horizonte acidentada assumiu, frequentemente, uma conotação teológica e moralizante, evocando o “sublime”. Não é de estranhar o carácter onírico de várias telas, pois as planícies flamengas não ofereciam modelos naturalistas para replicar, directamente, na pintura.


Paisagem com ciganos, David Teniers, o Jovem. Óleo sobre tela, c.1641-1645.
OBSERV.: «A obra possui uma construção espacial naturalista com jogos de luzes e sombras. Na paisagem, os ciganos estão em frente à gruta, símbolo da vida errante e marginal. Já as cabanas e os camponeses representam a vida sedentária submetida às regras sociais»
(texto de Luciane Páscoa, publicado na revista online: umbigomagazine.com )

II – A Vida no Campo
Devastada pela guerra feroz entre protestantes e a coroa espanhola, a Flandres conhece umas tréguas de 12 anos, a partir de 9 de Abril de 1609. Com uma nova relação de forças na região, institucionaliza-se a criação das Províncias do Norte (protestantes) e a zona contígua sob o domínio dos arquiduques dos Países Baixos, em representação dos interesses espanhóis – Alberto e Isabel Clara Eugénia. Na arte, assiste-se a um surto de índole propagandística, ostentando-se uma paz e uma prosperidade mais desejadas do que reais ou sequer possíveis em menos de uma década. De certo modo, reaparecem as paisagens algo ficcionadas, embora a aproximar-se maximamente de uma realidade, ao menos, verosímil…
Em Brueghel, o Velho, as representações do quotidiano, com gente simples e momentos prosaicos, é recorrente, como o prova a tela «Mercado e Lavadouro em Flandres» (1621). A imagem aqui postada eternizou uma ocasião de festa, embora bastante sóbria, ao jeito do pintor: 

Boda campestre, Jan Brueghel, o Velho. Óleo sobre tela, c.1621-1623.
OBSERV.: «Nesta pintura, o tema do cortejo nupcial pode ser interpretado como metáfora da união e da concórdia entre os arquiduques e seus súbditos, sob a tutela da Igreja de Roma, representada pelo templo no centro da composição.» (texto de Luciane Páscoa, publicado na revista online: umbigomagazine.com )

III – Paisagem de Gelo e Neve
Tema já presente em iluminuras dos Livros de Horas medievais (exempo no «Très Riches Heures du Duc de Bérry», 1525-1569), ficou associado ao Natal, saindo de moda no final do século XVII. Além da luz do Inverno nórdico, rosada e cinza com os reflexos azulados do gelo, estes quadros constituem um registo único da forma de vida das populações locais, evidenciando a qualidade da sua construção e a capacidade de domarem a dureza do clima. Os patinadores e os trenós lindos, as casas sólidas com telhados bem adaptados aos nevões, dão conta de um desenvolvimento conquistado a pulso, onde nem os divertimentos faltam.
O clima inóspito é especialmente patente na tela sobre o cerco militar, com a planta do campo de batalha em destaque. Fica-se impressionado com as condições do grupo de soldados, no primeiro plano, consumidos pela penúria e enregelados pelas temperaturas negativas da região.

Paisagem com patinadores, Joos de Momper, o Jovem. Óleo sobre madeira, c.1615.
Ilustrativo da vida dos povos nórdicos, nada intimidados pelo frio do Inverno.

IV – O Bosque como Cenário: Vida no Bosque, o Bíblico e o Encantado
Para os nórdicos, o arvoredo é um lugar convidativo e inspirador, fonte de descobertas e símbolo dos primórdios da criação, no seu estado mais puro. Converte-se, assim, em cenário ideal para imortalizar os episódios da mitologia clássica e da Bíblia.
Nos textos explicativos da sala, alertam-nos para o facto de ser frequente os flamengos pintarem em parceria, ficando um incumbido da paisagem e outro dos seres humanos (quando os havia, pois a maioria das telas ficava-se pela vegetação), especializando funções nos ateliers de enorme produtividade e de reconhecido prestígio internacional.
Rubens e Brueghel funcionaram em conjunto, como se verá na secção seguinte.
Nesta, a talentosa família Brueghel (contam-se, pelo menos, 6 pintores, ao longo de 4 gerações) emparelha com especialistas na figura humana, resultando em telas magníficas: 


A abundância e os Quatro elementos, Brueghel, o Velho, 1615, sendo as figuras de Hendrick van Balen.
A beleza do detalhe, apanágio de Brueghel, está bem exemplificada no canteiro de flores, no canto inferior direito.


Entrada na Arca de Noé, Brueghel, o Novo, 1630.

 V – Rubens (1577-1640) e a Paisagem
As obras patentes no MNAA pertenciam à colecção privada do artista, só tendo sido conhecidas postumamente. Correspondem ao estilo narrativo cultivado no último quartel da sua vida, considerando-as a produção mais pessoal, devidamente emancipada das preferências e sugestões de clientes e mecenas.
Tendo também desempenhado tarefas diplomáticas, ao serviço dos arquiduques que, por sua vez, serviam Filipe IV (Filipe III de Portugal), este acervo espontâneo e menos épico, oscilou entre cenas mitológicas e devocionais, bem ao gosto da corte espanhola. 
Aqui vemos o exemplo da dupla Rubens e Brueghels, o Velho, que se encarregou do bosque e dos animais:

Visão de Santo Huberto, Peter Paul Rubens e Jan Brueghel, o Velho.
 Óleo sobre madeira, c.1617-1620. (Detalhe)

 VI – No Jardim do Palácio
Num estilo cortesão, as três grandes telas da sala exibem imagens exteriores de três edifícios reais flamengos, vistos a partir dos jardins, pontuados por gamos, veados, pavões, lagos e fontes, canteiros de flores, socalcos de relva fofa e pequenos bosques frondosos, idílicos. São eles os palácios de Coudenberg, Tervuren e Mariemont.
Neste trio sobressai o lindíssimo quadro, atribuído a Brueghel, o Velho, mostrando a fachada principal de Tervuren, com os arquiduques a passear no relvado em frente ao lago azul, que confere enorme serenidade e harmonia ao conjunto. Um registo muito conseguido de um monumento que só chegou aos nossos dias pela pena do grande mestre flamengo. Compreensivelmente, é das obras mais replicadas no estacionário da exposição:  


Os arquiduques Isabel Clara Eugénia e Alberto no palácio de Tervuren, em Bruxelas, atribuído a Jan Brueghel, o Velho. Óleo sobre tela, c.1621.

VII – Paisagens Exóticas, Terras Longínquas
Pintadas a partir das descrições dos marinheiros, percebe-se a amálgama de elementos de diferentes partes do globo, junto aos espécimes fantasiados que povoam o imaginário dos europeus, bombardeados pelos relatos entusiasmantes sobre um novo mundo longínquo e quase virgem.
Curiosamente, até nas fantasias há inúmeros clichés, tais como os índios semi-nus e engalanados com plumagens coloridas a festejar (q.b. subalternamente) a chegada dos descobridores ocidentais, estes trajados com alguma solenidade e em poses majestáticas. As palhotas dos nativos replicam, no fundo, os casebres europeus mais modestos, só que revestidos com a vegetação que se presumia brotar nos trópicos. As frotas navais são aprumadíssimas, assemelhando-se a um festival náutico, como se nunca tivessem sido fustigadas pelas violentas tempestades em alto mar.
Da fauna à flora, passando pela arquitectura e pelas etnias populacionais, serão raras as imagens sem discrepâncias gritantes. A falta de rigor impera, até pela perspectiva excessivamente optimista e europocêntrica, retratando atmosferas tranquilas e ecuménicas que, só por coincidência, existiram.

VIII – Paisagens de Água: Marinha, Praias, Portos e Rios
Já na Idade Média, os cenários aquáticos aparecem em miniaturas dos Livros de Horas (exemplo: o de Van Eyck, 1370/1400), a celebrar as epopeias clássicas da literatura helénica de Homero, Virgílio e Ovídio, numa interpretação mais modernizada e cristã.
No século XVII, esta temática autonomiza-se e descarta-se de quaisquer conotações religiosas ou alegóricas, privilegiando antes as exaltações patrióticas com os combates navais pela supremacia dos mares, no auge da expansão ultramarina, disputada pelas grandes potências europeias do Norte da Europa. Ainda assim, domina um tipo de figuração estática, demasiado alinhada e simétrica, onde prevalece uma concepção estética alheia à fealdade sanguinária da guerra.
Brueghel, o Velho deu um contributo relevante para a independentização deste género, impondo uma representação mais naturalista das paisagens marítimas.

IX - … E em Itália Pintam a Luz
As denominadas paisagens italianizantes pintam Roma e o campo em volta da Cidade Eterna, muito apreciados pelos artistas que faziam périplos profissionais desde a Flandres até à Europa meridional. Aqui se destacam, a partir de 1620, o holandês Herman van Swanevelt e o francês Claude Lorrain, que se mudaram para Itália, arrastando uma horda de discípulos.
Fascinados pela luz quente e dourada do sul, multiplicam-se em exercícios pictóricos a todas as horas do dia, sobretudo ao poente e ao nascer-do-sol, no afã de representar esta novidade tão difícil de descrever aos seus conterrâneos.  
A encomenda de meia centena de obras para decorar o novo Palácio Bom Retiro, de Filipe IV, fixou-se nas narrativas religiosas e nas paisagens bucólicas, à moda de Itália, que se quadrariam melhor com o espaço onde o palácio real foi edificado: os terrenos do antigo Convento dos Jerónimos. 

Até 30 de Março, ainda há tempo para saborear a mostra dos 57 quadros do Prado. Aos Sábados, o horário estende-se até às 21h00 e o bilhete pode ser comprado online, para se evitarem esperas em filas intermináveis.  


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) Para informação sobre horários e visitas guiadas consultar a página do Museu:

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