16 outubro 2014

Das mudanças

a luz especial das tempestades, fotografia de JMAC, o homem de Azeitão


A noção de aperfeiçoamento, o auto-conhecimento, a ambição do Céu como recompensa máxima, o sentido de sobrevivência ou o desejo de agradar atiram-nos para a mudança. A mudança é, paradoxalmente, a única constante da vida, e devemos mudar - ou pelo menos estar dispostos a. Não falo da mudança de emprego, de casa, de mulher ou de cão. Falo da mudança do que somos.

No livro Lo Specifico del Dottor Menghi (Italo Svevo) este cria um remédio que lhe anularia todas as emoções e lhe permitiria, por isso, criar melhor, pois as emoções só atrapalham o trabalho do artista. Esta pílula milagrosa (e o itálico reflecte alguma ironia...) provoca, obviamente, uma mudança profunda em quem a tomasse. Deixemos este caso mais radical e no domínio de uma certa ficção e baixemos ao terreno comezinho que é a nossa existência corriqueira: pode haver curas que matem um homem? Pode haver mudanças que nos descaracterizem de tal forma que possamos dizer que determinada cura matou determinada pessoa?

Somos egoístas, vaidosos, directivos, forretas, adictos, rancorosos, orgulhosos, preguiçosos. Apaixonamo-nos pelos outros apesar dos defeitos ou por causa dos defeitos? Até que ponto uma mudança pode ser de tal forma intensa que a pessoa já não é a mesma, foi despida do que a caracteriza para manter apenas uma pele? No fundo, como se fossemos uma roupagem que permanece sobre um interior que se altera em função das circunstâncias. E então, o manuel é um número de contribuinte perene, porque aquilo que ele é dentro de si é caduco. Quem é, então, o manuel?

Podemos replicar o raciocínio a uma potência infinitamente ridícula: o tratamento que elimina a agitação à maria e lhe dá, por isso, uma certa indiferença que ela nunca teve, curou ou matou? As cirurgias plásticas (por questões estéticas apenas) curam pessoas ou matam pessoas? Vou mais longe, usando um termo sensível: o prolongamento artificial da vida. O que significa, na realidade, prolongamento artificial? Significa que a vida tem um tempo definido? Alguém que se habituou a estar à cabeceira de moribundos afirmava que fica sempre algo de belo, quanto mais não seja a cor de uns olhos. Talvez matemos as pessoas - apesar de as mantermos vivas - quando já não as conhecemos, já não lhes revemos os beijos, o cheiro da pele, a tristeza dos outonos, os risos límpidos. 

Podemos curar e com isso curar, mas podemos curar e com isso matar. A diferença é tudo, e talvez não tenha importância, afinal...

JdB

3 comentários:

Ala disse...

Boa reflexão.
Nunca me apaixonei por ninguém por causa dos seus defeitos. Talvez para os outros pudessem ser defeitos, para mim foram qualidades ou extensōes/complementaridades.
Rebeldia para uns pode ser destemor e ousadia para outros. O sossego para outros pode ser apatia e desinteresse. Talvez por isso seja tão difícil vestir peles que tentamos moldar á perfeição e ao consenso, porque a que vestimos é sempre reflexo do que achamos que os outros querem e quase nunca do que nós verdadeiramente queremos. Nasce a dissonância, a insatisfação que nos corrompem o juízo até ao fim.

Gostaria que retomasse o tema de Svevo.

arit netoj disse...

Querido João,
Tenho pensado muito neste tema da vida e dos seus limites... Sinto que o homem tanto quer controlar que desvirtua tudo, as pessoas permanecem vivas sem qualidade, só para o homem tentar provar que consegue ser mais forte que a morte?
Beijinhos à espera de mais tempo para debatermos isto...

Anónimo disse...

Lee Kun-hee, empresário milionário à frente dos destinos da Samsung, como o JDB bem sabe, diz: “Change everything but your wife and your kids.”
E a empresa renasceu das cinzas, qual fénix!

No entanto, concordo com arit netoj.
Business is business. People are people. Don’t cocktail it just for fun, although you may have the power to do it, JDB.

Beijinho Arit:)))



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