29 setembro 2016

Textos dos dias que correm

Os vícios mais difíceis de extirpar

Desde o seu primeiro discurso de fim de ano dirigido à Cúria Romana, o papa Francisco não perdeu ocasião para estigmatizar um vício recorrente em cada cúria, mas também em cada comunidade, sobretudo monástica ou religiosa: o falatório e a murmuração. E as suas palavras - em discursos oficiais como em intervenções de improviso - não temem expressões fustigantes: pediu a prática da «objeção de consciência? Perante palavras vãs que podem matar, condenou o «terrorismo do falatório», advertiu para as «murmurações e invejas» também e sobretudo quem tem um ministério na Igreja e quem vive a vida religiosa, evidenciando o «poder destrutivo» da língua usada como arma contra os irmãos e as irmãs.

Mas o que são as murmurações e o falatório? Murmuração é palavra, discurso hostil que exprime reprovação, mau humor, mas que não é dita em alta voz e a quem deveria ser dita como eventual correção fraterna, assim como é sussurrada às escondidas, dissimulada, mais parecida a um tumor indistinto do que a uma palavra humana.

Não nos esqueçamos que a murmuração é um vício detestável, várias vezes descrito na Bíblia. Este comportamento aparece nos livros em que se atesta a saída do Egito do povo de Israel. No caminho do deserto, junto a Mara, quando a água foi dada como amarga, então «o povo murmurou contra Moisés» (Êxodo 15, 24). Logo depois, eis outra murmuração no deserto de Sin, contra Moisés e Aarão, os dois guias do êxodo: «Quem dera que tivéssemos morrido pela mão do Senhor na terra do Egipto, quando estávamos descansados junto da panela de carne, quando comíamos com fartura! Mas vós fizestes-nos sair para este deserto para fazer morrer de fome toda esta assembleia!» (Êxodo 16, 3). E é o próprio Moisés a definir estas palavras como murmurações (cf. Êxodo 17, 3). Também Maria e Aarão, irmã e irmão de Moisés, murmuraram contra ele («falavam contra Moisés», Números 12, 1) e receberam de Deus o castigo da lepra (cf. Números 12, 9-10).

Murmurações que são contestações ao guia, à autoridade, mas não dirigidas diretamente ao destinatário, antes movidas às escondidas, quando é possível fazer juízos, aumentar factos ocorridos, manipulá-los, não existindo o sacrossanto direito de explicar, defender-se ou aceitar humildemente a crítica. Os salmos históricos recordarão estas murmurações e a sua sanção, renovando sempre o convite a não participar nelas. Só um exemplo, que mostra, entre outros factos, como a murmuração está ligada à falta de fé (cf. também Êxodo 16, 8): «Não creem na palavra do Senhor, nas suas tendas continuam a murmurar, não escutam a sua voz» (Salmos, 106, 24-25). Também sensibiliza, por fim, que o humilde e pobre resto de Israel seja apresentado com um excerto que diz precisamente respeito ao uso da palavra: «Nem proferirá mentiras; não se achará mais na sua boca uma língua enganadora» (Sofonias 3, 13).

No Novo Testamento, além das murmurações dirigidas contra Jesus por parte dos seus adversários (cf. Lucas 5, 30; João 6, 41.43.61) ou pelas multidões (cf. João 7, 12.32), é impressionante notar com quanta insistência os escritos apostólicos advertem contra este terrível vício: «Não murmureis, como murmuraram alguns deles [os filhos de Israel no deserto] e caíram vítimas do exterminador» (1 Coríntios 10, 10); «fazei tudo sem murmurar» (Filipenses 2, 14); «praticai a hospitalidade uns com os outros, sem murmurar» (1 Pedro 4, 9).

As murmurações parecem por isso o vício mais recorrente das comunidades: porquê? Porque são o modo mais fácil de descarregar a violência contra a autoridade e as suas decisões ou contra outros em comunidade, quando não se tem a coragem do cara a cara, do dirigir a palavra claramente a quem julgamos necessitado de correção e de crítica, ou de tomar a palavra nos contextos comunitários. E se não se tem a coragem do cara a cara, porque não exprimir a crítica a um dos membros do conselho, instituído também para isso, ou a dois ou três anciãos, segundo o ensinamento evangélico (cf. Mateus 18, 15-17)? Os covardes, os medrosos, aqueles que não têm uma postura de verdade na transparência, recorrem facilmente à murmuração, sobretudo contra a autoridade, pedem para não serem julgados por essa autoridade que julgam às ocultas.

A murmuração, pois, cria cumplicidade. Quem, com efeito, tem uma dificuldade com a autoridade ou não é leal, sabendo que um outro tem a mesma dificuldade, murmura com ele: deste modo cria-se uma cumplicidade-contra, mostra-se um apoio fraterno ao outro, é-se solidário com ele, e assim o outro será, por sua vez, mais solidário ou amigo com quem apoia as suas críticas e as suas acusações. Estas são operações por vezes inconscientes, mas que são descobertas por quem se interroga sobre a própria responsabilidade, procura conhecer-se também nas suas zonas de sombra e maldade, procura ser sincero e transparente.

Sim, na murmuração julgamos o outro, contestamo-lo, aliamo-nos contra ele, alimentando-nos da inimizade que nos habita e que desejaria a negação do outro, sobretudo se este nos recorda o limite, a lei, a regra, o Evangelho. Não seria mais simples, ao preço de errar, ir ao encontro do outro e dizer-lhe num cara a cara franco o que pensamos e como julgamos, assumindo toda a responsabilidade que é requerida pelas ações e palavras próprias? Um abade dizia: «O monge que insinua malignidade divide uma multidão de monges e separa uma comunhão». E ainda: «É melhor comer carne e beber vinho do que devorar com a maledicência a carne dos irmãos!».

Para encontrar uma inspiração para as reiteradas intervenções do papa Francisco contra os perigos da língua, e em particular quanto à exigência de praticar a objeção de consciência aos falatórios, basta ler este dito do abade Isaías: «Se um irmão te obriga a ouvir calúnias contra um seu irmão, não te deixes intimidar e não acredites nelas, pecando contra Deus, mas diz antes: "Sou um pobre homem: o que me dizes diz respeito a mim e não sou capaz de carregar o seu peso"».

Sabemos todos que a murmuração é um dos grandes problemas da vida monástica, talvez o vício mais difícil de extirpar. É uma doença que leva a julgar constantemente cada ação, cada gesto, cada palavra dos outros com um olho mau: «Se o teu olho é mau, então tu estarás inteiramente na treva» (Mateus 6, 23), disse Jesus. S. Bento propõe como antídoto a humilhação que leva à humildade, e várias vezes na Regra condena a murmuração, chegando quase a suplicar: «Isto recomendamos sobretudo, abster-se de murmurar». Mas em toda a literatura monástica - em S. Pacómio, em S. Basílio, na Regra de S. Columbano e na de S. Frutuoso, até a S. Francisco - se recorda que a murmuração, entre os pecados mais graves, se persiste merece a expulsão do mosteiro, porque quem murmura divide, desfaz, mata a comunidade e o vínculo de caridade que a mantém unida.

E o falatório? O falatório é mais quotidiano e extenso, ainda que aparentemente menos grave. Não visa tanto a autoridade mas gosta de ficar nos problemas e acontecimentos que dizem respeito aos outros. No falatório inventam-se muitas coisas, talvez sem calúnia, mas as palavras têm o seu peso e habitualmente influenciam quem as escuta ou inspiram-no a pensar de determinada maneira. No falatório, além disso, interpretam-se subjetivamente os factos ou as palavras, mas pretende-se ser objetivo e sobretudo distorcem-se muitas mensagens, muitos significados, ou não dizendo tudo, ou exagerando, metendo em evidência algumas palavras escutadas em comparação com outras. Sim, falatório como coscuvilhice, com leviandade e estupidez de quem não sabe o que diz, como língua intravável, incapacidade de calar carregando o peso de uma solidão que é constitutiva para cada ser humano. Escreve Tiago na sua carta: «Quem sabe travar a língua é um justo, um maduro» (3, 2), porque «a língua é um fogo, um mundo de mal» (3, 6).

Nas cúrias como nas comunidades há sempre quem, mal encontra alguém, fala dos outros e fala mal. Não têm muita coisa a dizer de si porque têm um "eu mínimo" e vivem num mundo pequeno e restrito, porque permanecem ociosos e assim preenchem com o falatório o seu tempo, porque não querem olhar para dentro de si e contemplar a própria opacidade. Tornam-se especialistas em reconhecê-la nos outros e falam sempre dela, em todas as ocasiões. Mas os faladores e os murmuradores são fáceis de discernir, basta alguns anos e revelam-se por aquilo que são: irmãos e irmãs em quem não se pode confiar, que, sobretudo se corrigidos, têm sempre razões para se defender e para não assumir a responsabilidade das palavras que dizem. Justificam-se com «o seu mal-estar», com o «ouvi dizer», com «o seu sofrimento», endossando sempre a responsabilidade para os outros, sem nunca se interrogarem sobre as próprias responsabilidades.

Não surpreende então que o papa Francisco, precisamente no discurso de encerramento do Ano da Vida Consagrada, tenha querido voltar com força à metáfora do «terrorismo do falatório»: «Quem faz mexericos é um terrorista. É um terrorista dentro da própria comunidade, pois lança como se fosse uma bomba a palavra contra este, aquele, e depois segue tranquilo. Destrói! Quem age assim, destrói, como uma bomba, e depois afasta-se». Cabe a cada um de nós desarmar estes engenhos mortíferos.



Enzo Bianchi 
In "L'Osservatore Romano", 24.9.2016 
Trad.: Rui Jorge Martins 

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