08 setembro 2016

Textos dos dias que correm

José Tolentino Mendonça: Amar é não controlar o que o outro vai fazer do amor

Os livros são perigosos porque são aceleradores e intensificadores da nossa experiencia humana, abrem portas e janelas que nem sequer sabíamos que existiam, são surpreendentes encontros de vida. Ao mesmo tempo são cúmplices inesperados da nossa aventura humana. Cada um de nós é também os livros que leu, os autores que encontrou. Os livros são esse alargar de horizontes que permitiram aquele encontro mais secreto e profundo com a nossa voz. O ato da leitura é um ato de exposição, mesmo quando parece muito inocente acaba por ser uma aventura da qual nenhum de nós sai verdadeiramente igual à forma como entrou.

A minha primeira biblioteca foi a minha avó, analfabeta, mas sabia romances de cor e era um encanto escutá-la. O que formou a minha alma foi a leitura dos poemas, que é feita mais de intensidade e de fulgores. A poesia dá-nos mais espaço para o silêncio, é como um relâmpago a que se segue muita outra coisa, que é da construção do leitor. A oração diária do livro dos salmos foi música no meu ouvido. A leitura da poesia foi uma espécie de iniciação ao ato de ler. Penso que a poesia é uma ordem mendicante, os poetas são mendigos do real. Por vezes temos uma atitude de dominação sobre as coisas e os outros, mas se cairmos em nós percebemos que somos e sabemos pouco. A aceitação dessa escassez é fundamental para nos abeirarmos do mundo de outra forma.

Acontece pensarmos que o nosso tempo se destacou como uma jangada de pedra ou metafísica da história humana, e acreditamos que somos radicalmente outra coisa diferente do que os homens foram, do que gravaram na pedra, do que escreveram. E de repente, ao lermos textos antigos e contemporâneos, percebemos que estamos muito próximos dos nossos antepassados, que são, de certa forma, também os nossos sucessores.

Job, por exemplo, o homem do protesto, que não aceita as respostas fáceis em relação ao sofrimento, que desentende o sentido de o homem justo ter de penar neste mundo; e quer falar diretamente com Deus, e Deus aceita essa espécie de duelo verbal com Job. Com a forma como esse livro está escrito, a sua arquitetura, as suas palavras, a raiva, percebemos que estamos inteiramente ali, aquelas palavras são as que nós diríamos.

Não consigo separar a sabedoria do amor; a sabedoria é uma inteligência, uma ciência, uma arte, mas é tudo isso como uma forma de amar. Quando pensamos na grande sabedoria, pensamos naqueles que, vivendo a grande depuração que o tempo opera em cada um de nós, são capazes de conservar uma inocência, uma pureza, um afeto. É sempre necessária uma porção muito grande de amor para chegar à sabedoria.

S. Paulo, no momento da conversão, ficou cego para começar a ver. A cegueira é uma metáfora de uma outra visão. É necessário um apagamento, um corte. Quer a experiência da tradução quer a da criação literária nasce de um corte primordial, que é muitas vezes a contemplação do mundo, o espanto perante o real. Esse corte obriga-me a ver as coisas de outra forma. Há que apagar o modo imediato, comum, mais óbvio e aceitar a escuridão, aceitar que não vemos, só tateamos.

Jesus perguntava: «Como ousas dizer ao teu irmão: "Deixa-me tirar o argueiro da tua vista", tendo tu uma trave na tua?». Este exercício de humildade em relação à vida é muito importante para o ato da criação. Por outro lado devemos perceber que na escuridão nós vemos. Em criança temíamos o escuro, e mais tarde aprendemos que no escuro vemos muitas coisas que nele se revelam. E aceitamos como preciosas essas coisas que percebemos dessa forma. Há que ensaiar novas visibilidades, novas formas de compreensão do mundo, sabendo que a sabedoria pede de nós uma fome e sede inesgotáveis. Comove-me muito que o professor Eduardo Lourenço esteja aqui a tomar notas na primeira fila. É essa curiosidade infinita pelo mundo e pelos outros que é sabedoria, que creio ser a mais elevada forma de amor.

A relação pedagógica é uma grande paixão. É muito interessante ver chegar uma geração de estudantes. Em Teologia tenho o privilegio de não ter turmas muito grandes, é possível acompanhar o percurso de cada aluno. Isto é para mim muito estimulante. O trabalho do professor é muito do semear. Há coisas que vemos mas o mais importante é, por vezes, o que não vemos. Isto aproxima-se muito de uma definição que gosto muito de amor: amar é não controlar o que o outro vai fazer do amor. Há testes e exames, e aí o professor pode avaliar, mas sabemos que os percursos mais fecundos aconteceram para lá dos resultados: foi uma marca, um estímulo, uma palavra, um despertar que depois se tornou uma âncora para a vida e fez a diferença. Aprendo muito com os estudantes, e o que me interessa é passar um método, uma paixão por um determinado assunto, porque sei daqui a 10 ou 20 anos eles falarão deles com outras palavras, citando outros autores, mas o entusiasmo será o mesmo.

Quanto mais inúteis são as coisas de que me ocupo, mais feliz me deixam.

Texto redigido a partir das intervenções de José Tolentino Mendonça no debate "A sabedoria dos livros", com Frederico Lourenço 
Festa do Livro em Belém, Lisboa, 2.9.2016 
Redação: Rui Jorge Martins 

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