06 dezembro 2017

Vai um gin do Peter’s?

DESCOBERTA DE TELA MÍTICA DE LEONARDO (1452-1519)

O génio do Renascimento, considerado por muitos o maior pintor de todos os tempos, distinguiu-se igualmente noutros ofícios e engenhos. Leonardo foi também cientista, matemático, engenheiro (percursor da aviação e da balística), botânico, anatomista, arquitecto (perito em construções militares), escultor, poeta e músico. São assinaláveis os seus contributos para a anatomia humana ou para o conhecimento da óptica e da hidrodinâmica.

Auto-retrato (1510-1515) de um idoso de olhar profundo e respeitável, que lembra a figura ímpar de Gandalf da saga do «Senhor dos Anéis», transposta para o cinema através da trilogia do realizador neo-zelandês  Peter Jackson.

Atribui-se às suas experimentações arriscadas com os materiais usados, o facto de apenas dezena e meia de pinturas terem sobrevivido até aos nossos dias, onde se destacam a celebérrima «Mona Lisa» (Louvre) e o fresco da «Última Ceia» (Milão). Isto descontando os múltiplos esquisses e diagramas registados nos cadernos de anotação das considerações científicas e artísticas, a par dos descritivos sobre inventos extraordinários como s protótipos do helicóptero e do tanque de guerra, a máquina calculadora, o casco duplo nas embarcações, o recurso à energia solar, uma abordagem preliminar ao estudo das placas tectónicas, etc.

Leonardo nasceu em Anchiano na comuna toscana de Vinci, situada na província de Florença. Duas figuras marcaram a sua juventude: o mestre Andrea del Verrocchio e o nobre florentino mais poderoso e influente da cidade – Lorenzo de Medici. Conta-se – com possível exagero – que Verrocchio teria desistido de pintar depois de se deparar com a excelência do anjo feito por Leonardo no quadro composto em mano-a-mano «O Bapistmo de Cristo»: 

Da dupla Verrocchio e Leonardo (responsável pelo o anjo mais à esquerda que segura a túnica de Cristo e por retoques vários na figura de Cristo e nas rochas em redor, aplicando a nova técnica de pintura a óleo, já dominada pelo jovem prodígio), 1472–1475, Galleria degli Uffizi.

Os seus trabalhos eram assinados com o primeiro nome ou, mais enfaticamente, com: «Io Leonardo» (Eu, Leonardo), omitindo quaisquer apelidos, talvez pela condição de filho ilegítimo de um notário e de uma camponesa, embora não seja certo, pois passou a adolescência na casa paterna onde o pai lhe providenciou uma formação exemplar. Aos 17 anos, lançou-se na vida profissional como aprendiz do atelier de Verrochio. 

Outro dos seus atributos era a beleza física e a sofisticação de modos, sendo muito apreciado em tertúlias e serões sociais. Pensa-se que terá servido de modelo ao David esculpido por Verrocchio em bronze, ou à figura do Arcanjo na pintura «Tobias e o Anjo». 

Vivia-se, em Itália, uma época de ouro, fruto da junção de três génios do calibre de Leonardo, Michelangelo e Rafael, predilectos dos melhores mecenas, onde se incluía o próprio Papa e inúmeros eclesiásticos, para além dos nobres e da alta burguesia. Compreensivelmente, correspondeu também a um período glorioso da arte sacra.

É neste contexto que, em 1499-1500, Leonardo pintou um magnífico Cristo ressuscitado, envergando as vestes do azul que é apanágio do sagrado. Adoptou o melhor estilo dos ícones, em posição frontal e representado em meia figura, para imortalizar a invocação «Salvador do Mundo», identificável no gesto da bênção com a mão direita erguida e os dois dedos cruzados, além do globo terrestre em cristal sustentado pela mão do lado do coração. É impressionante o efeito portentoso da transparência da orbe que evoca, em simultâneo, a pureza da esfera celeste e a grandeza do planeta, aqui mostrado de forma muito metafórica numa limpidez cristalina capaz de reproduzir, rigorosamente, as duas principais componentes planetárias: a crosta terrestre simbolizada no tom rosa da carne do próprio Salvador, e a imensidão dos oceanos que toma a cor do manto do Senhor do Cosmos, na tonalidade também partilhada com o céu. Até o brilho iridescente das estrelas está bem presente através das ínfimas e incontáveis bolhas de ar que se concentram na zona onde transparece a mão que salva. Merece um zoom:    

O reflexo de luz nos pontículos de ar do cristal, segurado com firmeza e suavidade, parece querer trazer para a zona que simbolizaria a terra a beleza única das noites estreladas

A história atribulada da tela começa pela surpreendente reatribuição da autoria do quadro, quando foi a restaurar às oficinas da National Gallery (NG), na primeira década do século XXI. Qual não foi o baque ao revelar-se, numa segunda camada encoberta pela pintura visível, um traço incrivelmente fino e sofisticado. De tal modo exímio que o nome de Leonardo começou a impor-se. Para a prova dos nove, os restauradores foram buscar a tela de artista de Vinci pertencente à Galeria – «A Virgem dos Rochedos»  – comparando os pigmentos e demais características técnicas. Seguiram-se as consultas a inúmeros peritos de todo o mundo, até se chegar ao consenso sobre a autoria. Redescobria-se, assim, uma nova obra-prima do génio renascentista. Em 2011, a NG dedicou-lhe uma exposição, que foi a sua estreia absoluta ao grande público. 

Transcreve-se a cronologia bem condensada pelo Expresso(1) com os momentos-chave do percurso atribulado da tela, que é um mistério ter resistido a tanta aventura. Talvez o facto de ter viajado pelos séculos praticamente incógnita, tenha ajudado:  
         
«1500 - A encomenda
Luís XII de França celebra a conquista de Milão e encomenda a Leonardo Da Vinci a imagem de Cristo com a bola de cristal na mão, então muito em voga. Nasce a obra “Salvator Mundi”.
          
1625 - O dote
Henrietta Maria de França casa-se com Carlos I de Inglaterra — conhecido pelo seu amor às artes — e leva como dote, entre outras coisas, a célebre pintura.
         
1649 - A doação
Durante a guerra civil inglesa, a peça de arte é entregue ao capitão John Stone, por ordem de Oliver Cromwell, juntamente com toda a coleção de Carlos I, que se dispersa.
         
1660 - O regresso
A pintura de Leonardo Da Vinci regressa à corte inglesa, mas depressa é oferecida ao duque de Buckingham, cujos descendentes decidem vendê-la.
          
1763 - A venda
Em fevereiro, a obra, então intitulada “Head of Our Savior”, é vendida a Sir Charles Robinson, mas acaba por desaparecer entre restauros e repinturas.

1900 - A reatribuição
A obra de arte reaparece, mas é agora atribuída a um discípulo de Leonardo Da Vinci, Bernardino Luino, e vendida a Francis Cook. Em leilão na Sotheby’s, em 1958, é vendida de novo, por 45 libras, e é atribuída a outro aluno do mestre, Giovanni Antonio Boltraffio.
       
2013 - A exposição
Depois de ter sido exposta na National Gallery, em Londres, a obra “Salvator Mundi” é vendida por mais de 127 milhões de dólares ao milionário russo Dmitry Rybolovlev.
        
2017 - O leilão
Depois de passear pelo mundo durante o ano, a obra chega a Nova Iorque para ser leiloada pela Christie’s esta quarta-feira. Está avaliada em 100 milhões de dólares.»

O melhor fica para o fim, mostrando por inteiro a magna obra assinada pelo grande Mestre do Renascimento que, séculos depois, voltou a maravilhar o mundo. Claro que protagonizou o maior recorde de pintura leiloada alguma vez registado, apesar de haver peças de peso no mesmo leilão da Christie’s, como obras de Andy Warhol, entre outras. Em apenas 19 minutos, consumou-se a transacção histórica decorrida a 15 de Novembro, no Centro Rockefeller de Nova Iorque, na presença de mil participantes e de vários outros milhares em ligação directa com o coração de Manhattan, a partir de pontos distantes do planeta. Dir-se-ia que esta participação interplanetária terá cumprido o desejo do ícone de Leonardo, confirmando que num globo tão perfeito cabe toda a Humanidade:   

Medidas do quadro: 66x46 cm, comprado por fundos de pensões associados a museus e colecções de arte

Tem qualquer coisa de presente de Natal antecipado coincidir, nesta quadra, a estrondosa notícia urbi et orbi sobre a redescoberta da mítica tela e a sua aquisição por fundos ligados a museus. Numa altura em que o mundo navega por águas incertas e perigosas, um Salvador vem a calhar. E este – diferentemente do pobre Bebé nascido nas franjas do Império Romano – não é difícil de reconhecer, graças à genialidade de Leonardo. É giro provir de um artista tão talentoso e sobejamente reconhecido por esta geração, um presente que contagiou o mundo como um rastilho! Que outra boa surpresa poderia impactar por todo o planeta como o «Salvator Mundi» do final do século XV ?
    
Maria Zarco
 (a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta) 
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(1) Artigo assinado por Alexandra Carita e publicado na parte da revista do semanário de 11 de Novembro. 

1 comentário:

Anónimo disse...

Até pareceria mal um elogio a cada 'Gin'.

Mas este é muito bom. No texto, nas ideias, na 'profundidade'.
eo

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