05 março 2018

Para a T, para o F e, obviamente, para o A

Com o mal dos outros posso eu bem... (da sabedoria popular)

***

Nos últimos dias, pelo quarto de um qualquer hospital pediátrico, passaram os seguintes agregados familiares:

  1. Uma criança pequena, penso que ainda bebé, com meningite. A mãe, de baixa, passa os dias no quarto do hospital. O pai dorme naquele quarto todas as noites, porque durante o dia trabalha. Quando entraram tinham a expectativa de lá ficar uma semana. Saíram ao fim de um mês.
  2. Uma rapariga nova, de sete anos, talvez, com um problema cardíaco. A mãe, cabo-verdeana e solteira, trabalha a dias, pelo que naquele curto período que pernoitou no quarto deixou a filha sozinha com as enfermeiras, porque se não trabalhar não ganha.
  3. Uma criança indiana com um vírus, que chorou toda a noite e com quem a mão se zangou toda a noite na língua de ambos, uma vez que não falam português.
  4. Outra criança de dois anos, com artrite reumatóide, que entrou com um pai furioso porque o peluche da filha tinha desaparecido, o que devia ser motivo de inquérito. No dia seguinte, mais calmo, disse a uma das mães que também lá tem um filho: podemos começar de novo? 
  5. Uma criança de sete anos com um físico de dois, que geme baixinho e com dores. Diz a mãe que é um milagre da natureza (ou da vida ou da força ou da fé) porque não era suposto ter sobrevivido.
Se este texto fosse escrito daqui a dois dias, certamente que acrescentaria mais casos à lista. Há naquele quarto uma dinâmica própria dos hospitais: entram alguns doentes, saem outros (quase) curados que dão lugar a outras crianças que entram para ficarem um dia ou um mês ou, quase sempre, um prazo indeterminado.

Um hospital pediátrico é tudo: é uma violência, um desafio, uma desestruturação familiar, um sufoco, uma esperança ou um drama. Entra-se como se é, mas sai-se o que a vida naqueles dias faz de nós. Não se sai mais infantil, mais puro, mais ingénuo, mais crescido, mais sabedor, mais confiante ou mais iludido, com mais vocabulário técnico ou a saber manejar uma seringa. Sai-se mais, sai-se maior. Sai-se mais atento, mais pessoa, com uns olhos rasgados para o nosso semelhante. Ali, naquele quarto onde entram crianças doentes e que sofrem, e pais tensos, desesperados, sofredores, ali, naquele quarto, a igualdade é absoluta e o ser humano purifica-se. Não há apelidos, riquezas pessoais, estatutos profissionais ou conhecimentos importantes que valham a quem quer quer seja. Ali só há crianças doentes, algumas muito doentes. Ali só há vidas perturbadas, crianças arrancadas às escolas e pais arrancados às rotinas. Ali há - ou existe a possibilidade - da generosidade da ajuda mais altruísta, porque não espera nada em troca. Ali há - ou existe a possibilidade - do entendimento de pessoas que não se conhecem mas que falam a linguagem comum, a dos filhos pequenos que estão doentes.

Um hospital pediátrico é o mundo no seu pior mas, estranhamente, na possibilidade do seu melhor. No microcosmos de um quarto a interacção é muito próxima, não obedecendo a regras sociais de convivalidade que governam cada um de nós. Está-se pelos piores motivos e com isso pode fazer-se muito: abraçar a chorar quem não se conhece, dar-se a mão a uma criança de quem não nos aproximaríamos na rua só porque está sozinha e tem medo da trovoada, perceber que os gritos furiosos de um pai podem não ser mais do que uma manifestação de puro pavor, confiar um filho pequeno a um estranho enquanto se vai fumar um cigarro com travo a desespero e força. 

Um hospital pediátrico é um mundo onde tudo coexiste com sentido: a confiança nos médicos e a fé em Deus. Não no Deus que cura quem sofre, mas no Deus que, não sendo senão amor, vela por nós, mesmo que nós não saibamos como nem em que moldes. Um Deus que nos pode dar força, que está ao nosso lado para celebrar a alta que permite retomar a normalidade, mas que também está ao nosso lado para suster o desaire que é um internamento prolongado. Um Deus que tudo aceita e abraça: um pai que chora, uma mãe que ri, um casal jovem que encontra naquele sufoco uma escada que os faz crescer, que os ajuda a relativizar, que os leva a olhar para o provérbio que encima este texto e a dizer que sim, que está bem, mas que viram vidas muito difíceis de solidão e falta de entendimento básico, de ausência de rede social, de futuros pintados de preto indelével.

Há fases da vida que são uma prova ou que nos mostram, como se fosse um filme muito rápido mas ao mesmo tempo muito nítido, o que são as dificuldades sérias, fundas, por vezes permanentes. O que é a pobreza hoteleira do nosso serviço nacional de saúde e o que é a competência dedicada, mas também irritada e injustiçada, de alguns profissionais de saúde. Há fases da vida que nos mostram um mundo que não sabíamos que existia, porque estávamos acantonados nas nossas vidas burguesas e confortáveis, numa redoma de sossego e vagar de quem sabe que há dor, mas que deve ser no prédio ao lado. 

Não se sai de um hospital pediátrico como se entrou. Sai-se mais, mesmo que entre a entrada e a saída a prova seja difícil e a angústia muita. Mas sai-se pensando - ou tendo a possibilidade de - que o provérbio é uma treta naquele hospital. Relativizar é bom, sobretudo se soubermos que naquele hospital pediátrico os filhos dos outros são um pouco nossos filhos também.

JdB

3 comentários:

Anónimo disse...

Texto magnífico!

Grande abraço,
fq

ACC disse...

Texto magnífico, roubando as palavras de fq.
A suavidade com que fala da dureza, do sofrimento, é maravilhosa.
Aos T, F e A um beijo pelo sofrimento, um abraço pelo crescimento, pelo mais, pelo bem, porque com o mal dos outros não podemos nós.

Prisca disse...

Um texto grandioso diante de nós, seres humanos tão pequeninos e com tanto a aprender.É preciso relativizar tudo nessa passagem chamada vida. Precisamos ser resilientes diante de situações impossíveis de mudar e que tantas vezes nos ferem. Mas diante da resiliência saímos mais fortes, de uma forma ou de outra. À T, ao F e ao A que continuem sempre assim, Grandes diante da Vida, Guerreiros e Vencedores.

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