01 março 2018

Moleskine católico

Declaração de interesses (repetida quase ad nauseam): sou católico, voluntário, na medida das possibilidades, na paróquia que é minha desde há mais de quarenta anos. Já conheci seis ou sete priores e / ou coadjutores, e alguns acompanharam um período importante e desafiante da minha vida. Vivo numa situação conjugal que a Igreja classifica de irregular.

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Muito se tem escrito sobre este tema do sexo nos recasados. Aquilo que leio oscila entre a defesa de D. Manuel Clemente, a defesa da posição que o patriarca apontou como um caminho (a abstinência sexual), a crítica mais ou menos equilibrada desta ideia - normalmente por jornalistas / colunistas  -  e a pestilência opinativa que brota da boca dos comentaristas, normalmente não católicos, mas a entenderem poder - e dever - perorar sobre um problema que é dos católicos, porque a um agnóstico não se lhe pede que se abstenha de ter relações sexuais com o seu significant other.

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Durante alguns anos participei em Cursos de Preparação para o Matrimónio na minha paróquia. Pela minha frente, para ouvir o que eu tinha a partilhar, passaram dezenas e dezenas de casais que pretendiam receber o sacramento - algo ligeiramente diferente de casar... No meu entendimento, mais de metade, e talvez esteja a ser obsequioso, não tinha a menor condição para casarem pela Igreja e a escolha dessa modalidade obedecia a dois critérios: tradição e beleza. Mais de metade daqueles jovens não tinha ido à missa no domingo anterior ao casamento e não faziam a menor tenção de ir à missa no domingo a seguir. Não tinham prática religiosa, mas azulejos do século XVIII fazem um fundo fotográfico mais bonito do que o busto semi-desnudo da Ilda Puga que adorna as conservatórias. E para muitos outros, alguns dos quais conheço bem, era a tradição, a ideia de que faz sentido, mesmo que nem sempre tivessem a noção do que estavam a fazer ou do desafio que enfrentavam.

Um famoso político socialista, parece-me, disse um dia: não são os salários que estão em atraso; são as falências que não estão em dia. Aplica-se o mesmo, diria, aos casamentos pela igreja: não há excesso de divórcios; há é excesso de casamentos. 

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Li alguns textos de opinião sobre o tema em apreço. Li, em particular, dois que foram publicados no Observador, um dos quais escrito por alguém que conheço superficialmente, com quem partilhei tardes de convívio com jovens (e futuros) casais. Da autora de outro texto não sei nada; não conheço a senhora, sou amigo de quem a conhece. Ambos defendem com vigor a ideia da abstinência sexual e dão-lhe uma dimensão (quase) divina. Discordo de ambos - no conteúdo e na forma. Incomoda-me que um católico escreva que os recasados "relegam Deus para um segundo lugar", porque isso confere a quem o escreve uma superioridade moral e religiosa abusiva, para além de se constituir como juiz genérico de comportamentos que não podem ser analisados genericamente. Incomoda-me que um católico escreva que "[a abstinência sexual] ... é levar a sério as frases de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimónio".  Os recasados não discutem a indissolubilidade dos casamentos - talvez mesmo a discutam menos do que alguns sectores da Igreja que vêem com bons olhos a facilidade, por vezes questionável, dos processos de nulidade. 

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Conheço vários recasados, como conheço vários casados. É um lugar-comum afirmar-se que sei de muitas situações ditas irregulares em que, na minha opinião, os intervenientes estão mais bem preparados para comungar do que outros que o fazem porque não incorrem em escândalo público. As "misérias" dos primeiros são visíveis, as dos segundos nem sempre. Qual é a miséria dos primeiros? Recasamento com sexo. 

Cada caso é um caso - e há casos que merecem um segundo e um terceiro olhares. Fazer o caminho que o papa Francisco preconiza não é abrir portas à barbárie civilizacional, mas oferecer uma possibilidade compassiva. Quem fizer esse caminho revela vontade de o fazer e, estou certo, fará o seu discernimento acompanhado, chegando à conclusão, em consciência, se deve ou não comungar. Não serei eu, nem os comentadores que escrevem sobre esse tema como se fossem polícias de costumes, a relegar os recasados para o gueto dos desgraçados que colocaram Deus em segundo plano, ou que não levam a sério as frases de Jesus. Cada pessoa saberá, ou quererá saber de si. E o assunto não fica exclusivamente à sua consciência, mas ao critério acompanhado de um padre.

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Gosto da ideia de castidade. Não porque tem o significado que se costuma dar-lhe (e o cinto não engana...), mas porque eleva o acto sexual a uma manifestação de amor. Ser-se casto não é praticar-se a abstinência. Ser-se casto é ser-se equilibrado, fazer do acto sexual com a pessoa com quem se vive um gesto de afecto, de equilíbrio, de construção de um projecto (igualmente) divino. A falta de castidade atinge todos - os casados, os recasados, os solteiros. A castidade é, por isso, para todos. Não perceber isto, ou usar frases retumbantes carregadas de fundamentalismo, mas desprovidas de humanidade, é não perceber a vida; ou é transformar o caminho da santidade na inscrição num clube de eleitos de onde os aparentemente virtuosos públicos excluem os certamente pecadores públicos. 

JdB

1 comentário:

arit netoj disse...

Gostei muito das suas divagações, obrigada por pensar alto...
Beijinhos

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