01 agosto 2019

Textos dos dias que correm

Escutar o silêncio

Falar do silêncio. Dita assim, a frase parece um paradoxo, uma contradição dos termos. Por outro lado, acontece como para todas as realidades grandes e essenciais: só se compreende bem colocando-o em confronto/contraste. Como a vida se compreende bem à luz da morte, assim o silêncio assume sentido se confrontado com a palavra.

Com a qual, contudo, se reconcilia, porquanto silêncio e palavra são duas formas de uma mesma coisa, a linguagem, que é por essência modalidade da comunicação, da relação que se cria entre nós e qualquer coisa que é “outra”, até com aquela parte de nós próprios que sentimos como região “diferente” e obscura para a qual não encontramos palavras. Não falamos nós de “voz” ou “som do silêncio”? Recorda-me uma bela canção, porque o silêncio é também música.

Não quero começar com divagações pseudofilosóficas. Ao escrever sobre o silêncio, vêm à minha mente duas experiências.


Escrevi uma poesia…

A primeira tem a ver com os anos distantes e felizes quando ensinava nos meios de comunicação. Recordo que alguns alunos, quando de alguma forma entravam em confidências, traziam-me bilhetinhos, dizendo-me: «Prof, escrevi uma poesia». Eram uma ternura. Tratava-se quase sempre de textos onde de vez em quando se ia até metade da linha, ou onde por vezes apareciam aqui e ali rimas. Ingenuidade, certamente, mas por trás das quais havia duas intuições importantes.

A primeira é que para fazer uma “poesia” é preciso que as palavras respirem em “espaços de silêncio”, que era a zona “branca” em que estavam imersas. A prosa, a narrativa, e também a descrição, podem ocupar toda a linha: a poesia não, porque a emoção de que nasce precisa de ser “protegida” de espaços de não-palavra.

Também a rima – eis a segunda intuição – tem a sua importância, porque a poesia deve, de alguma forma, “cantar”, e como consegui-lo sem fazer tilintar as sílabas umas sobre as outras? Mais raro é o aparecimento naquelas folhinhas de vestígios de ritmo, mas o essencial estava lá: é o importante é que o silêncio é pedido para fazer cantar os momentos fortes que queremos confiar à poesia.

A outra memória é musical. Aconteceu-me duas vezes nestes meses de escutar na rádio, entre o ofício da Vigília e o das Laudes, um magnífico prelúdio de Debussy, sugestivamente intitulado “De spas sur la neige” (passos sobre a neve), uma música que parece feita de ar, macia como uma névoa luminosa, leve como a própria inconsistência da neve, e – sensibilizou-me pela primeira vez – uma pequena célula de duas notas que se repete com a insistência confortante de uma presença familiar, ou que talvez faz pensar numa pessoa que caminha com ligeireza na neve.

Uma “só” pessoa, todavia, como a pega negra que faz de fulcro à sinfonia de brancos na belíssima “Pie” (a pega) de Monet. Soube depois que o pianista era o grandíssimo Arturo Benedetti Michelangeli. Não me tinha enganado: a execução era demasiado bela, mágica, quase uma experiência visionária! E aqui a ideia do silêncio colou-se a mim sobre aquela de uma leveza delicada, de uma solidão feliz e, ao mesmo tempo, de uma profundíssima paz.

É tempo, agora, de tentar sintetizar alguns significados do silêncio, e portanto o lugar que tem, que pode ou que deve ter na nossa experiência de vida. Terminei recentemente um ensaio sobre a “retórica do silêncio” como “linguagem para dizer Deus” na poesia de R.S.Thomas, e não é difícil fixar algumas conclusões.


O silêncio como entorpecimento

Há momentos na vida em que nos tornamos “mudos”, diante dos quais é-nos instintivo dizer: «Estou sem palavras!». Podem ser uma grande alegria ou um grande sofrimento: o elemento comum é a intensidade da emoção que nos deixa como inebriados, dolorosamente ou alegremente.

Pense-se no que acontece quando um luto imprevisto, a morte trágica ou precoce de uma pessoa querida nos tira a palavra, e a comunicação é deixada para os olhos ou para os abraços.

Pense-se quando, quiçá numa volta da estrada, ou após uma curva na montanha, nos encontramos imprevistamente diante de uma paisagem arrebatadora, que nos deixa sem palavras, ainda que talvez se balbuciem ou se “exclamem” monossílabos sem sentido.

Que sentido tem este silêncio? Porque tem sentido. E diga-se já: recorda-nos a pobreza, a “miséria”, para o dizer com S. Bernardo, das nossas “palavras” (veja-se o esplêndido n. 111 dos “Sermões vários”), quando somos excedidos por alguma coisa de tão grande, que o vocabulário, por muito volumoso que seja, se revela um pobre trapo inútil. É um silêncio que nos ensina a humildade, e que denuncia desapiedadamente a radical futilidade de muito falatório que hoje grassa em todo o lado. Paradoxalmente, é o silêncio a ensinar-nos que a palavra é uma coisa séria.


O silêncio como opção

Se se faz a experiência dos “benefícios” do silêncio, chega-se ao ponto de o escolher até ao ponto, em certo sentido, de o programar. Entre as vantagens do silêncio, acompanhado como irmã natural da solidão, há a de nos fazer “atentos” e/ou de nos colocar à “escuta”, não só através dos ouvidos, mas também dos olhos, que nos fazem ler os outros no seu rosto e nos seus gestos, além do que nas suas palavras.

Silêncio como ir ao encontro. Seja evocada a família dos termos que têm o verbo “tender” (do latim “intedere”) como coração: “atender/atenção” (cuidar de, ter em consideração, estar com atenção), “estender” (do interior par o exterior), “entender” (tender para o interior, apossar-se do sentido), “protender” (estender para a frente, alongar), incluindo-se as versões negativas de “contender” e “pretender”, em que a “tensão” se torna belicosa e agressiva.

Este estender-nos para aquilo que é outro e fora de nós é protegido e bem governado só pelo silêncio, essa “pausa” que perscruta sentimentos, instintos, objetivos que evitem recontros ou equívocos, sobretudo com as pessoas para as quais nos “estendemos”.


O silêncio como antena

É outra modalidade da anterior, e trato-a à parte porque não diz respeito tanto à relação com as pessoas (escuta), mas com as coisas e os acontecimentos. Nasce da habituação ao silêncio físico e à solidão como lugar no qual se reencontra, por um lado, o seu centro, e, por outro, como capacidade de colher esses momentos imprevistos e imprevisíveis a que chamamos “epifanias”. Só se não estivermos distraídos pelo ruído, externo e interno, chegaremos sem esforço, impercetivelmente, a descobrir um raio de beleza numa florzinha amarela, grande quanto uma ponta de dedo que desponta da fenda de uma parede de cimento, e talvez nos sugira uma reflexão sobre a força da vida.

Recordo que há alguns dias, durante uma leitura bíblica, o olhar escapou-me para um vaso de flores aos pés do altar, sobre o qual naquele momento tinha chegado da janela um raio de sol que as acendeu, isolando-as da penumbra. Instintivamente disse-me: que belo! A “palavra de Deus” não me dizia nada naqueles instantes, mas Deus estava a falar-me nas flores acesas pelo Sol.

Gostaria de acrescentar que – é sempre o poeta R.S.Thomas que o recorda –, como a solidão, também a lentidão é irmã do silêncio, permitindo-nos dirigir o olhar “para o lado”, onde está a acontecer um milagre. Cada um pense em como, além do ruído, a pressa é outra desgraça do nosso tempo…


O silêncio “con-centração”

Ruído e pressa são duas das coisas, entre muitas, que nos trazem para fora (dis-traem-nos) daquele centro em torno do qual devemos construir a unidade interior da nossa pessoa. O remédio é encontrar a maneira de nos con-centrarmos, porque só assim é possível navegar entre as tempestades da vida.

Quando parece que nos afogamos, pode caminhar-se com a cabeça fora da água que nos envolve apenas se os pés se apoiam sobre um fundo sólido. Esse fundo é garantido pelo silêncio, um “lugar” a construir e enriquecer com uma série de recursos que cada um deve saber encontrar. Porque um “silêncio vazio” é insuportável, e tem como fruto apenas a procura espasmódica de distrações, num círculo vicioso sem saída.

Os recursos são aquelas formas de “contemplação” que permitem povoar o silêncio até o apreciar, até sentir dele uma necessidade física. São a arte, a literatura, a música, que chamam o silêncio e ao mesmo tempo o alimentam, epifanias de beleza saboreadas a sós ou em conjunto, para lhes partilhar o bem-estar que delas deriva, e cimentar assim a amizade.


O silêncio repouso

Quando se percebe toda a potencial riqueza do silêncio, não é difícil compreender que ele “envolve” a palavra no sentido que é o terreno fecundo que a gera e, simultaneamente, o ponto de chegada mais alto da comunicação, quando as “palavras” acabam por ser inúteis, e até fastidiosas.

Num belo livro dedicado à figura do Card. Martini, intitulado “História de um homem”, o autor, Aldo Valli, conclui reconhecendo quanto é verdade que «amigo é aquele com quem se pode estar em silêncio». Sem embaraço, sem necessidade de mais». É o silêncio em que a ausência de palavras define com felicidade não um vazio, mas um espaço de comunhão profundamente partilhado em que se está bem.

Na poesia “The gap”, R.S.Thomas evoca um Deus que se defende da “agressão” dos homens que pretendem chegar até ele com uma “torre de palavras”. Aqui o silêncio rima com “mistério”, a entender como aquele espaço de sentido que nunca acabaremos de explorar.


O tempo e as férias

Estamos em tempo de férias, e aqui surge-me outro paradoxo, que na realidade é apenas aparente, como o que se declarou ao início na expressão “falar do silêncio”.

E é esse duplo significado que tem em latim o verbo “vacare”, que em francês deriva em “vacance” e em italiano em “vacanza”. Enquanto hoje o termo indica, na maior parte dos casos, um “vazio”, ou um tempo “livre do trabalho”, no latim não se tratava só de uma “liberdade de”, mas sobretudo de uma “liberdade para”, como que a dizer que a primeira podia ser condição para a segunda.

E o segundo sentido de “vacare” era o de ocupar-se de alguma coisa com toda a concentração possível para criar/produzir alguma coisa de belo e de útil. Torna-se assim significativo o contraste tantas vezes evocado na literatura monástica medieval entre “vacatio” e “vagatio”: a primeira é condição para usar melhor o tempo, a segunda é um fútil e estéril perder-se e desgastar-se naquela vã curiosidade que contrasta com a sã.

Não será o caso, antes de ir “de férias”, de perguntar-se, talvez, no silêncio, que uso entendemos fazer do tempo?

Nico Guerini
In Settimana News
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 31.07.2019

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