02 outubro 2019

Do arroz de lampreia e da conversa

Não é difícil encontrar uma linha clara e inequívoca a ligar o arroz de lampreia e a arte da conversa. Ao contrário do que possa pensar-se, a ligação não é cronológica (seria demasiado pobre), isto é, ambas as actividades podem ser relativamente concomitantes porque uma suscita a outra. A ligação também não é ao nível da mestria (seria demasiado simples) isto é, para ambas as actividades se requer técnica, saber, experiência. A linha clara que une o arroz de lampreia e a arte da conversa reside mais ao nível da matemática: é uma linha binária, uma condição eliminatória, definitiva: 1 ou 0, sim ou não, branco ou preto, do lado de cá ou do lado de lá.

Desconfio de gente que à pergunta gostas de arroz de lampreia / de conversar? responde com um é-me indiferente. Os amantes de ambas as actividades têm apenas uma opção temporal, ou seja, dizer que hoje não me apetece ou dizer que hoje apetece-me muito. O verbo apetecer tem de ser precedido por um advérbio de tempo. O arroz de lampreia estabelece uma divisão muito definitiva entre duas classes de pessoas, o que não acontece com o bitoque, a dourada escalada ou o bacalhau à zé do pipo. Há uma divisão clara entre os que apreciam a vitualha e aqueles a quem a vitualha sugere um refluxo gástrico - ou que o têm, propriamente dito. Com a conversa é o mesmo: há os que gostam, e que podem dizer mas hoje não me apetece, e os que não gostam, e nos quais a frase mas hoje não me apetece se constitui como mentira. 

O arroz de lampreia e a arte da conversa são pares humanos, não pelo facto de atingirem os mesmo sentidos - que não atingem -, mas pelo facto de não permitirem estados intermédios, de ligeira indiferença ou indefinição: há quem coma a iguaria por educação, há quem converse por amabilidade. Porém, no semblante de um e de outro se descortina o desagrado que é reduzido à sua insignificância por via da urbanidade, da civilidade entre participantes numa mesma soirée. Não se gostar e dar a entender que se gosta é próprio de gente muito fina, de actores ou de diplomatas - três classes muito semelhantes.

Desconfiem das pessoas que entendem que pode responder-se à pergunta gosta de conversar? com um depende. Não depende; gosta-se de conversar como se gosta de açorda - pode acontecer é o interlocutor ser maçador, como pode acontecer fazer-se açorda com restos de pão de leite: ambos são detestáveis. Mas quem gosta de conversar, gosta; quem não gosta, não gosta. Pode aplicar-se a mesma linha de pensamento ao arroz de lampreia: Pergunta: gosta? Resposta: depende. Depende de quê? De ser feito com lampreia de aviário? Ou com arroz basmati?

Desconfiem, na verdade, de pessoas que não são determinadas nem claras quanto ao arroz de lampreia ou à conversa. E desconfiem de pessoas que discorrem sobre o tema, imaginando que isso concorre para a riqueza das nações.

JdB 

2 comentários:

Anónimo disse...

JdB,
1. A indiferença é uma forma larvar (ou alarve) da mentira.
2. Bem como apoiar-se no 'agora não me apetece' ou no 'depende'.
Sempre acabam por nos mostrar quem é falso. Quem não presta.

Claro que é muito trabalhoso manter-mo-nos no 'Sim, sim' e no 'Não, não'. Custa, acima do mais, na nossa (con)vivência com o próximo — que neste tema não estará tão próximo quanto isso, ou quanto nós esperaríamos e gostaríamos que ele estivesse.
O Cristianismo é mesmo difícil, diria mesmo que é tramado.

Como diz bem, mentir é próprio de gente fina, actores ou diplomatas.
E não só, acho eu.

Penso que compreendi muito nas suas entrelinhas (gaba-te, cesto).

Abraço do ao

Anónimo disse...

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