18 dezembro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

DE VITÓRIA EM VITÓRIA ATÉ À DERROTA FINAL - «A HERDADE»,

O novo filme(1) de Tiago Guedes revisita com mestria uma parcela ampla da história de um país sujeito a enormes transformações, sentidas também num Alentejo aparentemente pacato e menos vulnerável a mudanças vindas do exterior. 

A personalidade cativante de João Fernandes, dono de um dos maiores domínios da metrópole – dito ‘latifúndio’, na nomenclatura pós 25 de Abril – está talhada para gerir a terra com garbo e carisma, numa extensão perfeita de si próprio. A magnífica empresa rural, que herdara após o doloroso suicídio do irmão mais velho, fluía solidamente sob o seu pulso firme e empreendedor. Pontificava sobre extensos olivais com mantos de água e pequenas praias fluviais, o casario dos trabalhadores bem orientados sob a sua batuta e o monte onde a casa grande se estendia em U, fiel à tradição arquitectónica do Sul da Península partilhada com as fincas andaluzas. 

O argumento, montado em espiral, começa e acaba junto à copa da árvore centenária, que se impõe num horizonte plano e raso. Mergulhamos na infância de João, algures na década de 50 do século XX, quando aquela ramagem frondosa serviu de cenário ao enforcamento do irmão morgado. O pai obrigara-o a encarar o cadáver e deixara-o no vazio: o que termina – avisou-o – termina! Tendo apenas 6 ou 7 anos, o pai condescendeu que fugisse, de seguida, para se abrigar na pequena ilha à vista da árvore antiga onde a morte baloiçava ao vento. Ali terá recuperado o ânimo, pelo mesmo apego à terra que revitalizara Scarlett O’Hara quando o mundo escapou ao seu controle dominante, sonegando-lhe as expectativas. Na forte réplica portuguesa de ‘E tudo o Vento Levou’ reencontramos, em seguida, o jovem adulto confrontado com os desafios do tempo, à medida de uma maioridade pujante. Experimenta, então, a pressão descarada (e em caricatura) dos sequazes da política centralista da Primavera marcelista, boçais e implacáveis no afã de orquestrar as vontades individuais, sobretudo das elites mais independentes. Conseguiriam domar o indomável e bem relacionado João?      


Tinha a força pessoal e as alianças certas para marcar posição, mesmo em contraciclo com um regime controlador.

Hábil, corajoso e sustentado por um bom jogo de alianças, o dono da terra não se deixa vergar. Antes sulca vias para reacertar o rumo segundo o que entende ser mais justo, sem beliscar o seu património. Com a mesma habilidade e coragem, esquivou-se às libertinagens perigosas que a Revolução dos Cravos agitou no Alentejo. Nessas afrontas, revelou uma tranquilidade igualmente invulgar, saindo ileso de um estatuto que o atirava para o olho do furacão. O seu networking eficaz voltou a permitir-lhe escudar-se no séquito de trabalhadores incrivelmente fiel e bem sintonizado com a sua liderança vigorosa e inspiradora. Os tempos acabavam por lhe correr de feição, parecendo eternamente moldáveis à sua vontade férrea. 

A mulher, sempre ansiosa e desconfortábel, entretinha-se a custo num mundo rural pouco a ver consigo.  O marido mal dava por ela e pelo incompreendido filho de ambos, que Leonor tentava proteger da dureza paterna.

João, o eterno sedutor, com a noiva e cunhada, quando podia cultivar a ilusão de ter o mundo a seus pés, como o staff da PIDE & afins.

Porém, nem o poderoso e talentoso João estava imune à realidade, que um dia poderia arrasar-lhe os planos, por válidos que fossem. Com o passar dos anos, também a fidelidade dos mais próximos acusou sinais de desgaste a um poder de lógica pessoalista, eivado de uma solidão egocêntrica mas auto-suficiente e feliz enquanto pôde decidir o curso dos acontecimentos. Adivinhava-se que a solidão medrava desde tenra idade, numa tentativa compreensível de sobrevivência. Ali se entrincheirara e a partir dela reinventara-se. 

Na casa grande e bem governada, as primeiras dissidências irromperam com fúria e descontrole, como é costume nos ambientes onde reina a disciplina. Até a morte voltou a perturbar João, levando-lhe o melhor aliado – o feitor, que aceitou ser cúmplice das liberalidades mais insidiosas do patrão. O paradigma empresarial dos anos 90 derrubou o modelo de gestão amador, tolerado numa economia protegida e quase de subsistência. O mundo, que lhe obedecera enquanto se bastara a si próprio, traía-o quando a idade começava a pesar, dificultando os sonhos que destinara à boa terra a que devotara a vida. 

À medida que o seu universo vai ruindo, em tortura lenta, outras vontades ganham fôlego, todas elas desafiadoras e contrárias à sua mundivisão. Na sua ordem repleta de previsibilidade, as brechas emergem do modo mais hostil, com suspeitas graves e ataques ad hominem, como se juízo final lhe fosse imposto por antecipação. Naquele cerco infernal, a última esperança esboroa-se com a partida abrupta do delfim semi-secreto. Resultou especialmente amarga, porque a decisão de partir confirmava o sentido de honra apurado e a bravura viril que o delfim herdara dele, incapaz de entrar nas jogadas oportunistas e algo mesquinhas dos que se movem pelo poder e pelo dinheiro. Nunca António, como nunca João, teria trilhado o caminho facilitista do conforto e da abundância ao preço de desguarnecer a honra de senhoras. E logo das duas senhoras que lhe eram mais queridas: a mãe e Teresa, a filha da casa grande. Acompanhamos a vitalidade do adolescente, num crescendo de maturidade e graça, até ao clímax de abraçar a opção mais difícil para o seu futuro, mas a mais digna e solidária. Sai de cena com a galhardia que João tinha protagonizado nas etapas mais difíceis dos anos áureos da sua vida. Uma vida que foi envelhecendo refém de um egocentrismo devorador, camuflado pelo glamour da juventude. Como sempre, mal o tempo da juventude se esvaiu, o monstro acordou da hibernação sem contemplações… 

António, numa despedida sem explicações para não expor outros, e com Teresa, nos derradeiros minutos de boa vida.

Na fase de ocaso, João enfrenta o pior embate com a personalidade mais antagónica: o filho legítimo, que ele desistiu de tentar entender. Só concebia a vida agarrada com garra para ser domada. Desesperava-o o feitio titubeante do rapaz, que parecia curtir a fragilidade e a inadaptação, ao estilo da mãe. Para cúmulo, o miúdo desforrava-se no típico desvio dos ‘fracos’ – conforme entendia João – num dia-a-dia sem norte e preso a vícios. Era a completa negação da fibra mínima para assumir o domínio patriarcal, nos moldes que o pai professava. Esta convicção genuína rapidamente resvalou da estranheza para a repulsa, materializando-se numa paternidade baseada na meritocracia afectiva, onde só cabem os primus inter pares, afinal os melhores, merecedores de respeito e ternura. 

Quando Teresa quis perceber o enigma da partida inesperada de António, o filho distante do arquétipo sonhado pelo pai, encontra a hora para o ajuste de contas com o progenitor. 

Na discussão mais violenta com o seu antónimo e descendente, carne-da-sua-carne por caprichoso acaso da natureza, João não hesitou em advertir o filho com a crueldade que tinha experimentado no seu pai: ‘tens a noção de que, se fosses um animal, já há muito terias sido abatido?’ Ambos conheciam a força daquelas palavras, pois a coqueluche do pai era o puro sangue mais perfeito da cavalaria. Em modalidade emotiva, ao jeito da Europa do Sul, repassam ecos inequívocos do tremendo princípio do apuramento de raça aplicado à humanidade. Nem a sombra da morte faltou à chamada, porque o resultado desagua sempre aí. 

A montagem brilhante é assinada pelo maior trunfo da equipa técnica de «A HERDADE» – Roberto Perpignani, que fizera carreira com Orson Welles, Bertolucci e ainda se destacara na montagem do documentário do alemão Thomas Harlan sobre a ocupação da propriedade dos Lafões: «Torre Bela», durante o PREC. Paulo Branco, produtor igualmente batido e integrado na equipa de Tiago Guedes, convenceu o italiano ao desafiá-lo a colaborar na desforra de «Torre Bela». Perpignani entusiasmou-se e ajudou ao bom resultado da obra do português. Também a fotografia é ímpar, assim como a escolha das personagens, consistentes e credíveis com a pequena excepção da ‘sogra’ (diria), mas com passagem residual na trama.  

De vitória em vitória até à solidão mais dolorosa, o bem-sucedido senhor da terra via-se impotente para travar a espiral de decadência. Depois de saborear em pleno o lema do Império Romano ‘a sorte favorece os audazes’, acabara vítima da profusão de qualidades com que a natureza o bafejara e ele se deixara enfeitiçar. O tempo já não corria a seu favor. O mundo já não reconhecia a sua voz sonora de comando. Restava-lhe a pequena ilha, subterfúgio de criança. Ali regressa só e sem o horizonte da infância. A vista para a firmeza altiva daquela árvore tão insensível às suas angústias não pressagiava nada de bom.

A sombra glaciar da árvore que testemunhou as mortes dos donos daqueles domínios.

O mistério do tempo – seguramente indomável à nossa vontade ulterior, ainda que pontualmente moldável, como provou o talentoso João Fernandes – já conheceu outras abordagens, mais realistas e não menos corajosas. Na memória do tempo, fez História uma sabedoria subtil, enraizada numa humildade lúcida. Suave como uma aragem pôde alcançar píncaros inacessíveis aos ventos colossais e violentos que estremecem, ciclicamente, a humanidade. A próxima Quarta-feira, traz-nos o dia do nascimento do Bebé, que quis ser pária no faustoso Império Romano. Dessa periferia remota, eclodiu a sua mensagem de Amor total, vivida e testada até ao último respiro, que continua a ecoar pelos séculos com a mesma vitalidade. O tempo, de início insensível a uma voz tão diferente de tudo o que conhecia, foi-se abrindo e iluminando com o sim de cada coração, pessoa-a-pessoa, aqui e agora, até ao fim dos tempos. Do caminho mais desconhecido dos homens veio a via mais humana, embora sempre misteriosa, sempre antiga e sempre nova.

BOAS-FESTAS a todos,

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original: A HERDADE
Título traduzido para inglês: THE DOMAIN
Realização: Tiago Guedes
Argumento: Rui Cardoso e Tiago Guedes 
Produzido por: Paulo Branco
Editor de Imagem/Montagem: Roberto Perpignani, que trabalhara com Orson Welles, Bertolucci e tinha feito a montagem do documentário «Torre Bela».
Fotografia: João Lança Morais
Duração: 2h44
Ano: 2019
País: Portugal

Elenco:
Albano Jerónimo (João Fernandes)
Sandra Faleiro (a mulher, Leonor)
Miguel Borges (o fiel feitor Joaquim Correia)
João Vicente, Leonel Sousa
João Pedro Mamede (o filho ‘falhado’, Miguel)
Ana Vilela da Costa (empregada e amante, Rosa)
Rodrigo Tomás (o delfim, António)
Beatriz Brás (a filha querida, Teresa)
Diogo Dória (o sogro)
Victória Guerra (a cunhada), etc. 
Curiosidade sobre o protagonista: Embora a personagem seja autónoma e bem desenhada, há quem a associe ao toureiro e grande proprietário rural, João Branco Núncio, conhecido por ‘o Califa de Alcácer’.
Local das filmagens: Herdade da Barroca d'Alva (Alcochete), do cavaleiro tauromáquico José Samuel Lúpi.

3 comentários:

Anónimo disse...

MZ,
Escreveu um muito bom e lindo texto. Fiquei com vontade de ir ver o filme.
ao

Anónimo disse...

Creio que vale muito a pena vê-lo, até por focar um período da história nacional semi proscrito, que ali está bastante bem tratado, à parte das figuras caricaturais e algo 'apoucadas' do Antigo Regime. De resto, respeita os inúmeros matizes da realidade, que não se verga a leituras de preto-e-branco. Mt obrigada pela sua mensagem tão simpática e estimulante. Aproveito para lhe desejar Bom Natal, MZ

Anónimo disse...

Agradeço a gentileza de me responder.
Que tenha Paz.
ao

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