29 abril 2020

Das histórias inverosímeis

Ontem publicou-se neste estabelecimento um texto encimado por um título: bem-aventurados os mansos. Neste vendaval que por vezes me assola comecei a associar muitas coisas, todas elas derivadas do título: KGB, música triste ou alegre, sinais gráficos de exclamação ou de interrogação, Outono ou Verão, gente irada ou gente triste.

Um dia contaram-me uma história (totalmente verídica) que penso já ter revelado neste estabelecimento: dois elementos do KGB foram a uma casa de fado; não percebendo português fixaram-se na melodia, na entoação, nos sons da voz ou da guitarra, no ambiente. E, afiançam-me, comoveram-se ao ponto das lágrimas. Ora, esta história é uma contradição em termos e há nela, por isso, algo de potencialmente falso. Eu explico, recorrendo a um silogismo:

1ª premissa: o fado é uma música triste; 
2ª premissa: a música triste é uma música centrípeta; 
Conclusão: o fado é uma música centrípeta.

Ora, um agente da KGB, habituado à tortura, à eliminação dos homens, à violência verbal e física, à ausência de remorso, é um homem com um potencial de fúria grande, com um tom de voz todo projectado para fora, para a defesa do Estado; é um ponto de exclamação, uma afirmação. A ira, pela sua própria natureza (tal como a alegria) é centrífuga. Assim sendo, um homem da KGB não pode gostar de fado porque é protagonista de uma força para dentro em simultâneo com outra para fora. A história tem de ser, por isso, mentira. Ou o fado é uma música alegre, o que não se afigura correcto.

Gostamos da música que revela o nosso íntimo. Gente pessimista (o pessimismo é, na sua versão mais arrojada, um ponto de interrogação, embora na maioria das vezes seja apenas uma reticência) gosta de Outono, de música triste. Podem até ter um pendor para a nostalgia, para a mansidão que não é a mencionada nas bem-aventuranças, mas a que se refere ao desequilíbrio de fluidos, a uma certa hidropisia, ao curvar-se sobre si mesmo que sugere o sinal gráfico já referido. A pessoa alegre é hirta, exclama, pontua, enche o peito de ar com vista ao esvaziamento assertivo, deseja a alegria que provoca a centrifugação da tristeza e a desfaz contra as paredes escuras do destino.

Desconfiem de gente irada, alegre ou que tortura, mas que gosta de música triste. Há uma contradição dentro delas que pode ser altamente perigosa, como se no interior dessa gente não houvesse equilíbrio, mas um estraçalhar de forças contrárias, um rasgamento violento.

É isto, no fundo.

JdB      

1 comentário:

Anónimo disse...

Encontrar comunalidades entre uma alheira e uma viseira protectora será o próximo desafio !
ainda estou a rir do seu texto.

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