21 abril 2020

Da pandemia e da fé

Sou seguramente um cristão; sou-o sem dúvidas quanto à convicção, com muitas dúvidas quanto à qualidade. Não sei se serei sempre um católico convicto, isto é, se me reverei sempre na forma como a Igreja Católica aborda / abordou alguns problemas ou sobre o modo como, até no meu tempo (e tenho 62 anos...) formatou muitas mentes. Este meu pensamento manifesta-se muito no desagrado com que recebo a ideia de que Deus está por trás de tudo o que acontece, e que temos de rezar a Deus para que venha a chuva, ou para que pare a chuva, ou para que se elimine o COVID-19 ou se salvem algumas vidas. Talvez por isso me tenha sabido bem ler uma citação de Jean-Miguel Garrigues que o Padre Pedro Quintela usou num texto que mão amiga me enviou (e que poderão ler na íntegra aqui): "falando adequadamente Deus não permite o mal. Permite a liberdade que o pode colocar no mundo."

Não sou teólogo, sou fraco pensador. Mas não gosto de ideia de que Deus está por trás das coisas boas e que, por trás das tragédias, está um desígnio que é imperscrutável. A pandemia não é obra de Deus, mas dos Homens; a cura de tanta gente não é obra de Deus, mas dos Homens. Aquilo que nos dias de hoje parece um milagre é obra dos Homens, não de Deus. Porquê? Porque eu concebo um Deus que não é senão amor, e que não optaria por deixar morrer milhares de pessoas por via de um vírus para salvar uma senhora de ficar cega quando lhe saltou óleo quente para os olhos. Esta pandemia obriga a uma escolha: ou se acredita que é um castigo (ou uma obra) de Deus ou não se acredita. Eu sou dos últimos, porque não quero crer num Deus que permite ou que promove esta tragédia.  

Não consigo rezar para que a pandemia desapareça ou a vacina venha já amanhã; só conseguiria rezar (se fosse pessoa mais decente do que sou) pela iluminação das pessoas que decidem, pela resistência física dos profissionais de saúde, pela estabilidade emocional das famílias confrontadas com o confinamento, a perda de rendimentos ou a ameaça do desemprego. Talvez gostasse de rezar por cada um deles individualmente, mesmo que não conheça mais de vinte nomes: que cada um deles, médicos, enfermeiros, pessoal do lixo, políticos, caixas de supermercado, gestores, professores, empregadas domésticas, encontrem a sua fonte de inspiração que não os deixe soçobrar, que lhes permita tomar decisões certas pelo bem comum, que sejam um exemplo para quem têm de ser um exemplo. Que rezem a Deus se forem crentes; que se inspirem em outra coisa qualquer. 

Por último, rezar pelo fim de qualquer coisa apresenta um problema de eficácia: quando é que Deus ouve? E quando é que sabemos que Deus ouve? Rezar por nós é mais egoísta mas talvez mais fácil: Santo Agostinho sabia que Deus o escutava pela medida das transformações na sua própria vida.  

Termino com uma citação que me é cara e repetida neste estabelecimento: Albert Camus, n'A Peste, um livro particularmente actual nestes tempos de pandemia:

Nesse instante dizia o padre que a virtude da aceitação total de que falava não podia ser compreendida no sentido restrito que se lhe dava habitualmente, que não se tratava da banal resignação, nem sequer da difícil humildade. Tratava-se de humilhação, mas de uma humilhação consentida pelo humilhado. Sem dúvida o sofrimento de uma criança era humilhante para o espírito e para o coração. Mas era por isso que era necessário passar por essa prova. Era por isso - e Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iam ouvir não era fácil de dizer - que era preciso contemplá-lo, porque Deus assim o queria. Só assim o cristão não se pouparia a nada e, fechadas todas as saídas, iria ao fundo da escolha essencial. Escolheria crer em tudo, para não ficar reduzido a negar tudo.

JdB

1 comentário:

Anónimo disse...

Ninguém é seguramente um cristão. Um cristão tem sempre dúvidas muito importantes acerca da sua Fé.
JdB, neste escrito Vexa não foi feliz. O que perdoo, porque é natural, tal afirmação é humana. Não será verdadeira, mas é natural.
Depois, o escrever que não acredita na oração é grave. A oração nada mais é do que nós conversarmos com Deus [como Adão fazia no Éden]. Escolhemos a intimidade.
Deus que disse que não lhe interessavam os sacrifícios; antes as obras.
Deus que tem um plano [divino] para o Universo.

Se reler os 10 Mandamentos, verá que são para um 'povo' reles, que colocava o seu conforto acima de tudo. Que sempre desprezou os seus irmãos das outras tribos. Repare o que se passou nos anos de 1930: os ricos foram para os EUA e o pobres, nos guetos, que se tramassem.

Mateus, um descendente de Levy, tribo encarregue de fazer as outras cumprir as regras religiosas, era desprezado por ser cobrador de impostos: num povo que venerava o dinheiro.
Levita sustentado, por lei, pelos outros judeus, trabalhando para os romanos? Mas que grande pecador.
Os fariseus, antes de se cruzarem com um publicano tinham, como regra, de se afastarem 9 passos, em semi-círculo, para não se contaminarem...

Tendo eu muitas costelas farisaicas, não o condeno porque sei que eu serei condenado.

Abraço de estima,
ao

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