15 abril 2020

Do que fazem uns olhos tapados


O julgamento de Friné (ou Friné diante do areópago), de Jean-Léon Gérôme (1861), Kunsthalle, Hamburgo

Diz-se que Friné, cuja vida remonta ao século IV a.C., fora acusada de impiedade perante o tribunal dos heliastas, e que Hiperides, o orador responsável pela sua defesa, temeu pela sua condenação; assim, desnudou-a, tendo desta forma convencido os juízes. Também se diz que foi ela que se desnudou, ou que foi absolvida porque a beleza estava associada ao bem. Também se diz, por fim, que nada disto aconteceu, o que é irrelevante para o caso.

Um homem nu, por pudor, tapa as partes baixas. Uma mulher nua, por pudor, tapará partes altas e baixas, ou só umas - não sei e não sei quais, que não fui perguntar a quem poderia perguntar. Friné, desnudada perante o areópago, tapou os olhos, e esse gesto é mais uma prova do que alguma civilização ocidental deve à Grécia antiga.

Quem brinca com crianças (se for com gosto é devoção, se for com convicção é amor) conhece as brincadeiras mais vulgares. Tapam-se os olhos e dizemos à criança: o pai / mãe / tio / avó, etc., não estão cá.  Depois tiramos as mãos dos olhos e dizemos já cá está. Faz-se isto repetidamente, porque as crianças não se cansam. De olhos tapados não estamos, de olhos destapados já estamos. 

Foi isso que Friné fez, no quadro de Gérôme: não tapou os seios ou o sexo; nunca conseguiria tapar tudo e, mesmo que tivesse mãos grandes, seria sempre Friné desnuda perante a areópago. O que Friné fez foi desaparecer. Tapou os olhos e disse àqueles homens que miravam a sua nudez: Friné não está cá. Só posso adivinhar o fim deste episódio: Hiperides voltou a tapar-lhe a nudez forte da verdade e Friné destapou os olhos, gritando, já cá estou! Depois, foi só ouvir a absolvição e ir à sua vidinha.

JdB

1 comentário:

Anónimo disse...

Se bem que eu nada tenha a ver com gatos, do lado da avó materna havia gatos, por causa dos ratos que andavam pelas casas. Um deles tinha o hábito de tapar os seus olhos com as patas quando fazia asneira e lhe ralhavam.

Áparte este áparte, o seu texto é francamente bom.
Abraço,
ao

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