Tirado ontem de dentro de um autocarro |
Fui convidado para ir ontem ao Porto fazer uma apresentação para médicos, maioritariamente europeus, especialistas em tumores renais em crianças ou adolescentes. Decidi ir de autocarro: apanhava o das 7.30h da manhã, regressaria em cima da hora de jantar - mais barato, moderadamente confortável, sem o inconveniente de uma viagem longa a olhar para a estrada.
O começo não foi auspicioso: num autocarro semi-cheio de gente em silêncio, uma senhora não parava de falar com o seu vizinho do lado, que ela só conhecera naquele momento. Só lhe ouvia o tom de voz e percebia palavras ou expressões como cheiro a mijo ou merda ou cócó. Fosse com o vizinho, fosse com o telemóvel, a senhora não se calava um minuto. À minha mente veio o fado que a Amália cantava: acho inúteis as palavras / quando o silêncio é maior.
Parámos em Leiria. A senhora entabulou conversa comigo fumando um cigarro castanho, potencialmente duvidoso - tu sabes que eu sou muito comunicativa, diria ela ao telemóvel - mas eu já a tinha tomado de ponta. Disse-me: sabe, toda a vida vivi em Cascais mas eu digo muitos palavrões. Não resisti ao remoque irritado e mentiroso: sabe, toda a vida vivi em Cascais e não digo palavrões.
Foi então que percebemos que a viagem para o Porto estava periclitante: os incêndios no norte tinham cortado uma série de auto-estradas. E é nessa altura que, fruto de uma situação potencialmente perigosa, com um cheiro a queimado, se cria um micro-cosmos dentro do autocarro: há alguém que se queixa de falta de ar, a senhora dos palavrões empertiga-se e diz: tem uma bomba, você? Eu tenho asma, bronquite e enfisema nos dois pulmões. E ao referir dois pulmões aponta os ditos com a mão, não vá haver gente que não saiba do que ela está a falar. Paramos, fugimos ao trânsito, metemos por vielas estreitas onde há filas intermináveis de carros. Há gente que quer sair, mas a senhora dos palavrões é taxativa: não saia pela sua rica saúde, eu sou doente oncológica e ja dei duas bombadas.
Paramos na zona de Aveiro e somos confrontados com o inevitável. O motorista, enervado e tenso, informa-nos que as autoridades foram claras: o autocarro não avançará mais, tem de voltar para o Estoril. As pessoas têm uma alternativa (gosto quando se diz duas alternativas): ou vão pelos seus meios para o destino ou regressam à origem.
A senhora dos palavrões volta a empertigar-se, perante a irritação geral (já com ela): como assim, sair? Quem é a sua chefe? Sabe que eu tenho 80% de incapacidade? Há gente a impor silêncio, a defender o motorista, a tentar estabelecer a ordem, mas 80% de incapacidade é assinalável, impõe respeito, mesmo que seja difícil perceber em que é que a senhora é incapaz. Despedimo-nos e eu digo-lhe solícito e sorridente, inundado de um alívio pouco cristão e de uma falta de transparência pecaminosa: devia fumar menos, sabe? Ela sorri, faz um passo de dança e, recordada da bronquite, da asma, do enfisema nos dois pulmões (para os quais aponta) responde-me de forma superior, toda segura nos 20% de capacidade: mas não bebo álcool, sabe? Nem tomo comprimidos.
10 minutos depois regressava ao Estoril, sem ter feito a apresentação, após 11 horas dentro de um autocarro. No pensamento, as vítimas daqueles incêndios. Na memória, os versos que a Amália cantava: acho inúteis as palavras / quando o silêncio é maior.
JdB
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