10 abril 2009

Uma reflexão, a propósito da memória e da justiça


estamos na semana da Páscoa. por outro lado, este este vosso escriba, como já uma vez aqui escreveu, não gosta particularmente de temas conotados com a 'actualidade'. por tudo isto, este 'post' é um pouco inesperado - talvez sim, talvez não, logo me dirão..

no domingo à noite, calhou sintonizar o televisor no programa 'câmara clara', de paula moura pinheiro, no canal 2 da RTP. o tema era pesado, nada mais, nada menos do que revisitar a guerra civil espanhola, a partir da polémica que, há uns tempos a esta parte, atravessa e divide a espanha, em torno da chamada 'lei da memória histórica'. de forma sucinta, esta lei estabelece o direito aos legítimos herdeiros / descendentes / representantes de pessoas desaparecidas no decorrer desses fatídicos anos (entre 100 a 150 mil pessoas, segundo várias fontes), cujos corpos estarão, em larga escala, depositados em valas comuns, de requerer a exumação dos corpos, a sua identificação e um enterro condigno, digamos assim. claro que uma operação desta envergadura tem custos enormes - e não é claro neste momento quem deve suportar os custos, individualmente, o que pode constituir uma discriminação económica inaceitável para as famílias com menos recursos e, dizem os críticos, um aligeirar de responsabilidades inerentes ao próprio Estado.

criticável ou não, na sua letra, esta lei tem dividido a sociedade espanhola, quanto ao seu espírito:

a) vale a pena remexer num passado, tão recente e tão trágico, quando se conseguiu uma transição pacífica para a democracia e uma espécie de "entente cordial" entre sectores ideologicamente opostos, herdeiros afectivos das facções que se guerrearam?

b) estando centrado no lado dos perdedores da guerra civil - os, algo simplisticamente, denominados 'republicanos', por contraponto aos ditos 'franquistas' -, não há aqui algo de revanchismo histórico, desajustado dos dias que correm? por outras palavras, se sabemos já que a história foi escrita, como sempre, pelos vencedores, é mesmo necessário exercer uma espécie de revisionismo histórico, mesmo que, no caso, em prol da mais absoluta verdade dos factos?

para se responder a estas e outras questões, cuja complexidade é incontornável, será preciso relembrar factos básicos.

franco e os seus generais - a ala militar mais conservadora - ganharam a guerra contra os republicanos e iniciaram um exercício sistemático de censura dos factos, utilizando a propaganda e os meios intelectuais alinhados com o lado vencedor, para espalhar as suas próprias teses. é um facto indesmentível. há por isso, um sentido básico de justiça que passa por recuperar, de forma isenta (se tal for possível, o que só por si valeria 'n' posts mais), o que se passou. ora, dar um tratamento condigno a quem se encontra em valas comuns pode ajudar, na medida em que permitirá identificar e singularizar um conjunto de realidades históricas e humanas que não se devem confundir. de forma simples, lado a lado, jazem diferentes tipos de pessoas. e elas merecem não ser confundidas umas com as outras, tão diferentes foram as razões para serem massacradas, tão distintos terão sido os seus comportamentos.

o que nos leva a outro elemento fundamental desta equação: do lado republicano, rapidamente a conjugação negativa (contra o lado franquista) se fez notar. não existiu um lado republicano, existiu uma república, de princípios democráticos, com as suas instituições, e um conjunto de diferentes facções revolucionárias (anarquistas, comunistas, comunistas trotskistas, proto-socialistas, etc) que se aliavam e combatiam entre si e contra a própria república, enquanto que, nos intervalos, combatiam todas juntas o inimigo comum. ora o que é notável é não só o desconhecimento desta 'pequena (mas decisiva) história', mas a noção, só hoje possível, de que os dois lados tinham, na sua génese, uma assimetria de disciplina cujo impacto no conflito só poderia dar no resultado que deu.

claro que isto tudo ainda antes de se introduzir o papel do apoio internacional a um e outro lado e que, naturalmente, foi decisivo. também aqui a um apoio efectivo militar ao lado franquista, correspondeu um apoio mais simbólico (quando não meramente neutral, em virtude de desconfiança quanto às reais forças dominantes do lado republicano - o sempiterno medo de uma deriva esquerdista?), bem representado pela legião de intelectuais, artistas, escritores que se voluntarizaram para ajudar, mas cuja capacidade, nesses dias, de fazer a diferença junto das opiniões públicas de então mostrou ser relativamente diminuta.

ora, na conversa do programa de televisão, entre paula moura pinheiro e dois historiadores, chamou-me a atenção o discurso extremamente bem construído, sereno mas civilizacionalmente empenhado, do senhor espanhol (professor universitário, escritor, ex-embaixador e actual membro do conselho superior, creio eu, do jornal 'el país'). para além de nos relembrar factos históricos básicos, com clareza luminosa, construi 'insights' sobre o que tudo isto, hoje em dia, representa para a espanha moderna, mas também para todos os outros países. falou de coisas tão simples como esta: os vencedores, por usarem métodos criminosos, não tornaram automaticamente dignos os vencidos; do lado dos republicanos, muitas facções usaram igualmente de métodos terroristas no seu desesperado combate; uns e outros massacraram civis, ainda que, pelos vistos, franco tenha conduzido um exercício mais sistemático e brutal.

no meio desses dias de ferro e fogo, há que recuperar a memória (e continuamos a seguir o discurso de alguém cujo nome, infelizmente, não recordamos) de que:

a) a dignidade ficou com quem praticou actos dignos; e, como disse o ilustre senhor espanhol, é um alívio perceber que não é hoje forçoso escolher, retrospectivamente, entre dois lados, igualmente bárbaros nalguns métodos utilizados. existiram, afinal, pessoas que escolheram outra via, a qual lhes custou seguramente a vida, mas que lhes atribuiu a dignidade do exemplo;

b) por exemplo, do lado republicano, os detentores do poder instituído, mesmo em guerra, mesmo assoberbados por toda a pressão que nos é impossível reconstituir nas nossas casas climatizadas deste século XXI, tentaram, até ao fim, manter os princípios democráticos em que acreditavam, lutando contra o inimigo externo e contra os inimigos internos que, a partir de dentro, proclamavam a revolução (socialista/comunista/anarquista).

é este trabalho sobre a memória, sobre a justiça, sobre a nobreza de espírito em momentos limite, esta espécie de luz sobre o desespero, que me fez absorver tudo isto e que me conduziu a esta necessidade de partilhar convosco esta reflexão.

que me desculpem os mais formalistas, os historiadores que detectem uma ou outra imprecisão, aqueles que não têm paciência para matérias mais densas ou menos agradáveis, até os eventuais defensores de um ou outro lado (que os há). este é essencialmente um testemunho subjectivo (o importante não é, pois, a ideologia de uma ou outra parte) sobre uma certa maneira de se estar na vida, verticalmente, 'no matter what'. rara e preciosa, como as especiarias mais finas, há séculos atrás.

porque pensar, no sentido mais humano e nobre do termo, é preciso. sempre.

boa Páscoa.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não sei o que o leva a não usar maiúsculas;torna leitura mais difícil.
Quanto ao artigo, bom.
SdB

Anónimo disse...

Gi, concordo inteirmente consigo. A ideologia perde sentido com o tempo, a memória atraiçoa e quem conta os factos, tem sempre uma forma de olhar e reproduzir, tão fiel quanto a realidade do real o permite. Não há causas certas ou errdas, há pessoas que, duma forma ou outra, no seu tempo e no seu contexto, acreditaram, se envolveram, contribuíndo para o caos e para a reconstrução da sociedade.
Agora um à parte - este texto é mais fácil de ler e entender, mas continuo a achar graça à sua desformatação e irreverência.
Boa páscoa.

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