29 abril 2009

Largo da Boa-Hora

Primeira de Duas

Hoje, aqui sentado no meu banco, tomei uma decisão que é arriscada, inovadora e experimental, mas da qual espero colher os maiores benefícios, e que partilho convosco para, se resultar, me acompanharem.
O meu projecto é adoptar em mim tecnologias da informática que tão bons e eficientes resultados proporcionam nos computadores, conforme todos constatamos.
Assim, decidi instalar em mim, pelo adequado download, um antivírus que imunize o meu hardware (alma, cérebro, coração) e o meu software (aplicações emocionais e racionais) contra ataques dos vírus mais ameaçadores para a sua estabilidade e performance, quer impedindo a sua entrada no meu sistema, quer neutralizando eventuais infecções já provocadas.
Como é sabido, a aplicação destas tecnologias ao ser humano ainda não foi tentada, quanto mais testada, mas eu arrisco a ser cobaia.
Ora, a primeira tarefa é delimitar, na panóplia dos vírus existentes, quais os elegidos para lhes impedir o acesso e expurgá-los do sistema se por acaso já passaram.
Como é sabido, não existe, ainda, no mercado, o produto de que falo, pelo que tenho eu de construir a aplicação a instalar, a qual será assim artesanal, protótipo, e, porque não sou especialista, muito limitada no seu alcance.
Acresce que não saberia cobrir todo o espectro dos vírus danosos, nem arriscaria ir tão longe na introdução experimental de tal novidade no meu sistema, porque certa cautela e prudência são mais do que recomendáveis, desconhecendo-se, como desconheço, os efeitos colaterais e demais sequelas possíveis destes caminhos nunca dantes navegados.
Tudo meditado e sopesado, e privilegiando as urgências e importância nociva, elegi como vírus alvo, a interditar ou expurgar, o desânimo, o pessimismo, o conformismo e o fatalismo.
Aqui começam as dificuldades deste artífice informático. É que tenho, primeiro que tudo, de caracterizar cada um dos elencados vírus para incorporar no programa o respectivo antídoto. Vamos, pois, lá tentar.
Desânimo, patologia da alma, que provoca no sujeito desalento, abatimento, esmorecimento, gerando uma incapacidade de acção e reacção para enfrentar a vida e as suas dificuldades. Em casos extremos reduz o ser humano, por excesso de inércia e inactividade reactiva, à condição de autómato, apenas capaz de agir e reagir a estímulos básicos e necessidades vulgares, decorrentes da mera sobrevivência. Importam consigo, sempre, o apagamento da alegria, da vontade de fazer, da confiança em conseguir alcançar, ou pelo menos de cair a lutar, a tentar.
Arrastam-se em quotidianos de tédio, em que está indistinta a distinção de si mesmos, engrossando caudais de seres que, por causa nenhuma, seguem os mesmos caminhos, na mesma ordem das coisas banais e vulgares, como que agrilhoados a um não destino qualquer, pois todos são indiferentes.
Pessimismo, patologia da alma, que provoca no sujeito a convicção profunda, a certeza absoluta de que no itinerário da vida o mal prevalece sobre o bem, o mau sobre o bom, o desamor sobre o amor, a dor sobre a felicidade, o infortúnio sobre a boa ventura, o insucesso sobre o êxito, a ruína sobre a edificação, a frustração sobre a obra, o pesadelo sobre o sonho. Em casos extremos reduz o ser humano, por premonições e visões dantescas, à condição de apavorado, tolhido e transido de medos e maus augúrios, mortificando-se por antecipação de sofrimentos certos, que lhes cobrem a alma com mantos pesados e negros de luto, e lhes encovam os olhos num negrume de breu. Arrastam-se em quotidianos que são cortejos fúnebres de um constante enterramento da vida, lamuriento e lúgubre.
Conformismo, patologia da alma, que provoca no sujeito a aceitação incondicional e reverente do actual estado das coisas, do se ser o que se é, do se sentir o que se sente, do se desejar o que se deseja, do se estar onde se está, do viver o que se vive e como se vive, numa renúncia e abdicação conscientes e voluntárias à alteração, inovação e até revolução, se necessário. Em casos extremos reduz o ser humano à condição de amorfo, de discípulo obediente acrítico, de subserviente da ordem e estado das coisas tal como configurados, formatados, no tempo em que vão passando. A vontade própria, privada que está do alimento do sonho, da imaginação e fantasia, do projecto, da ambição e desejo, esbate-se e dilui-se até se liquefazer em curso para uma qualquer vala comum.
Arrastam-se em quotidianos que são cortejos de cegos que recusam ver o sol e o horizonte, apenas lhe importando a corda guia que, estendida pela hierarquia e poder, lhes vai atando os caminhos.
Fatalismo, patologia da alma, que provoca no sujeito o convencimento da sua impotência para influenciar o curso dos acontecimentos, de modo que o destino de cada um, por mais que se faça, está fixado “a priori”, e seguirá inexoravelmente essa determinação, desacreditando-se, assim, a autodeterminação como expoente da condição humana, cujo exercício, na verdade dita, ou pelo menos influencia, decisivamente o futuro de cada um. Em casos extremos, reduz o ser humano à condição de testemunhas de si próprios, com abdicação de criadores de si mesmos, numa deprimente troca do lugar no palco pela cadeira de plateia, de intérpretes da sua vida passam a espectadores de uma vida que, por pormenor despiciendo, até é a sua. Desacreditando na sua vontade, esclarecimento, coragem, inteligência, capacidades, talentos, vontade, sonhos e desejos, desprendem-se de si próprios, largando o seu destino ao sabor das correntes, marés e ventos, como coisa que lhes não pertence guardar, definir e seguir como coisa própria. Quando se entrega o destino à discricionariedade do que está escrito nos astros, vai também, nessa entrega e desprendimento, a alma, que existe precisamente para animar a escolher e cumprir o que se decidiu livremente ser. A alma é o sopro, o vento, que enfuna as velas da nossa barca no rumo que o homem do leme lhe deu.
Arrastam-se em quotidianos que são cortejos de bruxos e adivinhos, astrólogos e magos, curandeiros e adivinhadores, curiosos e dedicados a descobrirem e lerem o que sabem já estar escrito no futuro, desprezando nessa ânsia o presente que vai passando e que não vivem na ganância da antecipação.
Escolhidos os mais ameaçadores vírus, e descritos sumariamente (desânimo, pessimismo, conformismo e fatalismo), cabe agora a este aprendiz de feiticeiro informático desenhar o antivírus, coisa que farei noutra jornada de trabalho, que o Sol vai alto e o tempo de estada neste Largo por hoje terminou.

ATM

8 comentários:

ANA CC disse...

ATM, já tive a oportunidade de lhe dizer que adoro os seus escritos. Hoje, especialmente, fico ainda mais, rendida. Como diria um amigo comum, há frases que gostaria de ser eu a escrever, e estas duas, são algumas delas: os portadores de desânimo estão " como que agrilhoados a um não destino qualquer" ; o fatalismo " reduz o ser humano à condição de testemunhas de si próprios.
Despeço-me, esperando ansiosamente pela próxima 4ªf
Ana CC

DaLheGas disse...

Desenhe, desenhe ATM. Embora palpite que Vexa não vai usar a aplicação, o mundo agradece esse upgrade na lucidez. Bom trabalho!

Anónimo disse...

Fica boa (a) hora depois de passar por aqui e ler este fantástico texto.
Parabéns ATM.
MOC

cris disse...

ATM,

Aceito a sua proposta, e vou seguir com atenção a sua experiência.
Penso que deve de estar numa fase da sua vida, que de repente, virou:
Sábio, pois conhece-se a si próprio.
Forte, pois conquistou-se a si próprio.
Tem Alma, pois aquele que não a perder, sobreviverá.
Há em nós uma voz que canta, porque temos alguém que nos escuta.
O melhor antivírus que poderemos pôr no nosso sistema operativo, é:
Quando de manhã o nosso botão On, é ligado, perguntarmo-nos:
Quem é que nos Ama e eu ainda não prestei a devida atenção, hoje vou amá-lo como deve ser e como merece. (Nem que seja a árvore da semana passada, vou dizer-lhe que sou feliz, é o nosso segredo).
Assim, espero já o ter ajudado a iniciar ao expurgo desses males de Alma.
E com este texto espectacular, lá vou eu ter de esperar mais uma semana.
Até lá.

maf disse...

Mais uma vez excelente ! ATM, quando leio os seus textos, surge sempre um sorriso irreverente, vindo sabe-se lá de onde, que não bate à porta, não se faz anunciar e simplesmente se instala nos meus maxilares, tomando conta, apropriando-se, até ser lida a última das suas palavras :-) então, calmamente, se vai embora, mas não sem antes avisar: volto na próxima 4ª feira ...

AJ disse...

O meu computador «crashou»!( Por quanto tempo... dependerá certamente de como «eu» e cada um de nós irá reconstruir o seu software)quanto ao resto uma coisa me parece certa: Uma civilização que se deixa de afirmar, que já não crê em si, aceita desaparecer. Resignação em forma de suicídio.
Aguarda-se ( e valoriza-se redobradamente este caminho «nunca antes navegado, sic») desfecho com a expectativa de eficaz receituario (ou em alternativa um belo texto).

Anónimo disse...

Que belo e lúcido texto, ATM. Um dos mais interessantes que já escreveu. Gostei imenso desta identificação dos vírus que nos matam por dentro e nos retiram a vontade de viver. Espero agora vê-lo a elencar os bons softwares que devem ser introduzidos no nosso sistema... Que bom foi lê-lo. pcp

a. disse...

(Ah menina G, não dê para trás, quem enfuna prá frente! :P )

ATM,
mais uma vez superou-se.

É de facto uma monitorização constante esta, a nossa de identificarmos aqueles pensamentos que nos minam e corroiem por dentro. Eu diria mesmo uma obrigação, se queremos ser e ter uma vida mais feliz, mais sadia. Há certos pensamentos que aparentemente inofensivos se entranham sem darmos conta e alastram como uma doença, e de nano que são, agigantam-se perante as nossas guardas, as nossas defesas baixas. Depois do 'vírús' se instalar, é o cabo dos trabalhos para eliminar o bicho, catano! é que atrás dum vem logo outro e outro, para o caos se instalar.

A primeira fase, a do reconhecimento, da consciência de, foi superada. Venha a próxima prova, e elas vêm, lá isso vêm...

Os astros, (só) servem para nos mostrar as energias e influências a que estamos sujeitos...
O nosso livre-arbítrio, o nosso ser/querer/fazer é que ditam o nosso caminho, o nosso destino. É nas nossas mãos que ele está. É da nossa responsabilidade, com as capacidades, vibrações que temos, fazê-lo acontecer, seja em que sentido for, a mando da nossa alma, sim. "A alma é o sopro, o vento, que enfuna as velas da nossa barca no rumo que o homem do leme lhe deu."
Quando percebermos que temos o que semeamos (hoje e desde sempre, para trás, muito lá para trás na vida), não deixamos na mão dos outros ou de um deus, as nossas atitudes, as nossas decisões, a nossa vida. Somos co-criadores dela, ainda que animados por essa centelha divina.

até depois, sem vírus :)
a.

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