26 setembro 2010

26º Domingo do Tempo Comum

Este trecho de Lucas pode levar-nos a presumir, numa primeira leitura seguramente precipitada e ligeira, que os ricos vão para o Inferno e os pobres para o Céu. Do modo de viver do abastado, sabemos apenas que “se vestia de púrpura e linho fino
e se banqueteava esplendidamente todos os dias”. No extremo oposto da qualidade, Lázaro, um pobre, que “jazia ao seu portão, coberto de chagas”. Muitos, interpretando os ensinamentos de Cristo à sua maneira, entendem que condenação daqueles que têm riqueza é um dado adquirido.

Uma segunda leitura pode guiar-nos à identificação do trecho como sendo uma descrição do homem na morte. O rico, “na mansão dos mortos”, mergulhado no sofrimento e no tormento, flagelado pelo fogo do inferno, ergue os olhos e vê Lázaro no seio de Abraão, inundado de uma paz celeste e recompensadora, sarado finalmente das feridas e da miséria, libertado dos “cães que vinham lamber-lhe as chagas”.

A perspectiva de que após a morte os condenados poderiam ver os que se salvaram, não seria totalmente descabida. Afinal, na Sua infinita bondade, Deus só não acolhe os que não querem, os que recusam o arrependimento – nem que seja no último instante. Um inferno com vista para o Céu seria uma provação mais. O nosso imaginário poderá até sugerir-nos que não há excesso de castigo para quem se condenou, levando uma vida de opções erradas, mantendo a obstinação de não arrepiar caminho, ainda que com a morte à vista.

Rodemos, então, o nosso olhar e o nosso raciocínio. Assumindo que quem se perdeu vê os que se encontraram, podemos conceber que o inverso é verdadeiro? Quem sobe para o Pai vê os que descem às trevas? É concebível que uma eternidade de felicidade passe pela visão da mesma eternidade de sofrimento? Seguramente que não. O nosso bem-estar, sobretudo quando elevado à dimensão e à intemporalidade divinas, não se compraz com, nem suporta a infelicidade alheia.

O que se oferece dizer em primeiro lugar parece ser de uma simplicidade cristalina. Na sociedade de hoje, o poder, a fortuna, o estatuto social, o sinal exterior de riqueza, têm uma enorme importância. A nossa competência profissional enche-nos de uma satisfação saudável ou de um orgulho vazio, garantindo promoções e aumentos que presumimos sempre justos e merecidos. O sistema internacional – que antes definia o metro padrão – adoptou, no Portugal contemporâneo, uma medida para avaliar a qualidade das nossas vidas – a percepção do sucesso. Não a realização pessoal, a satisfação ou o gozo, na sua expressão mais pura – apenas a percepção do sucesso.

S. Lucas alerta-nos bem: as grandezas social, profissional ou financeira de que dispomos na Terra não nos garantem um lugar cativo no Céu; não são, por si só, palavra chave para a vida eterna; não descodificam, automaticamente, o segredo que nos dá acesso à morada celeste. Os “critérios” de Nosso Senhor não assentam numa lógica de poder ou influência, riqueza ou poder de compra, notoriedade pública ou mediatismo.

Não sejamos tentados, no entanto, pela simplificação em excesso - a direita do Pai não nos é devida porque somos importantes ou temos dinheiro. Mas também não nos é vedada pelos mesmos motivos. O Paraíso não está povoado, apenas, por uma imensidão de ‘Lázaros’, atirando os ricos para uma condenação eterna indiscriminada.

O apóstolo vai mais longe no transmissão dos ensinamentos: o Céu ganha-se na Terra. É aqui, no nosso dia-a-dia, nas pequenas rotinas, na interacção com os outros, no modo como olhamos o próximo, que ganhamos a justa aspiração à Salvação. Há 2000 anos que temos um referencial – Jesus Cristo –, e um manual de boa conduta – os Evangelhos. Usemo-los como exemplo. Abraçar o projecto é fazê-lo na totalidade, e não nas partes que mais nos convêm ou menos incómodo nos provocam; a nossa disponibilidade só pode ser vencida pela fraqueza humana inerente a cada um.

Ser-se rico pode ser resultado de sorte, mérito ou ambos. Herda-se um património, cria-se um negócio do nada, desenvolve-se o legado dos antepassados. Ascender a cargos relevantes pode ser sinónimo de competência profissional, ambição ou alinhamento favorável de condições aleatórias. Parte do que temos ou somos é consequência de factores que nem sempre dominamos, para os quais não contribuímos de forma decisiva ou não emprestámos o nosso esforço, como sejam a aptidão natural ou a sorte. É, de alguma forma, uma dívida que temos - com a vida, com os outros. Com Deus, quiçá.

Simplifique-se e encurte-se a argumentação:

P: O que faço então com o dinheiro que recebi ou ganhei, fruto da sorte ou do esforço? O que faço então com a posição profissional ou social dominante a que ascendi, fruto da sorte ou do esforço? O que faço então com as qualidades pessoais que tenho, fruto da genética ou do meio ambiente? O que faço então com os talentos de que disponho, fruto de características que são minhas?

R: Ponho-os ao serviço das pessoas, do bem comum, do meu próximo.

Ser-se Feliz, verdadeiramente Feliz, é tocar a vida dos outros, É sentir que deixamos um mundo melhor, mesmo que nesse mundo caibam poucas coisas e poucas pessoas. É sentir que usámos o que temos e o que somos para ajudar os que precisam – não só os que tornam o sofrimento visível, mas também os que padecem da pobreza e solidão envergonhadas. É olhar para as crianças, para os idosos, para os marginalizados, para as vítimas da violência ou da fome. É fazer o possível e o alcançável.

Este Homem Novo que pode despertar está acessível a todos – pobres e ricos, influentes ou anónimos, cada um na sua dimensão. Aceitemos, no entanto, a ironia do destino: sermos detentores de fortuna, influência ou talento não nos proporciona mais regalias - dá-nos mais responsabilidades.

Concluamos: quando todos exercermos esse tal olhar, talvez a nossa vida seja medida pelo grau de felicidade que irradiamos, e a percepção do sucesso tenha de ser validada com uma pergunta simples, mas demolidora: ele / ela aparentam ter sucesso. Mas serão realmente Felizes?

O Céu ganha-se na Terra. Só que, ao contrário do que diz o célebre filme, o Céu não pode esperar.

JdB

Nota: Texto (muito) baseado num escrito em 2006 para comentário a este mesmo evangelho.

EVANGELHO – Lc 16,19-31

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
disse Jesus aos fariseus:
«Havia um homem rico,
que se vestia de púrpura e linho fino
e se banqueteava esplendidamente todos os dias.
Um pobre, chamado Lázaro,
jazia junto do seu portão, coberto de chagas.
Bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico,
mas até os cães vinham lamber-lhe as chagas.
Ora sucedeu que o pobre morreu
e foi colocado pelos Anjos ao lado de Abraão.
Morreu também o rico e foi sepultado.
Na mansão dos mortos, estando em tormentos,
levantou os olhos e viu Abraão com Lázaro a seu lado.
Então ergueu a voz e disse:
‘Pai Abraão, tem compaixão de mim.
Envia Lázaro, para que molhe em água a ponta do dedo
e me refresque a língua,
porque estou atormentado nestas chamas’.
Abraão respondeu-lhe:
‘Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida
e Lázaro apenas os males.
Por isso, agora ele encontra-se aqui consolado,
enquanto tu és atormentado.
Além disso, há entre nós e vós um grande abismo,
de modo que se alguém quisesse passar daqui para junto de vós,
ou daí para junto de nós,
não poderia fazê-lo’.
O rico insistiu:
‘Então peço-te, ó pai,
que mandes Lázaro à minha casa paterna
– pois tenho cinco irmãos –
para que os previna,
a fim de que não venham também para este lugar de tormento’.
Disse-lhe Abraão:
‘Eles têm Moisés e os Profetas.
Que os oiçam’.
Mas ele insistiu:
‘Não, pai Abraão. Se algum dos mortos for ter com eles,
arrepender-se-ão’.
Abraão respondeu-lhe:
‘Se não dão ouvidos a Moisés nem aos Profetas,
mesmo que alguém ressuscite dos mortos,
não se convencerão’.

3 comentários:

arit netoj disse...

Obrigada por pensar alto e me questionar obrigando-me a reflectir sobre outros pontos de vista.
Beijinhos

maf disse...

excelente dissertação, colega dominical. Gostei especialmente da nota final quando diz que o Céu ganha-se na Terra e o Céu não pode esperar. Tão verdade ! Arregacemos as mangas e saiamos do marasmo. O céu está aqui mesmo, na terra, no dia a dia. Descubramo-lo! (rsrrs quase pareço aqueles chefes das seitas, a instigar a sua comunidade :-).

Anónimo disse...

Excelente texto, JB!
Para ler muitas vezes.
Um abraço,
fq

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