29 março 2012

Moleskine


Deixemos que a caneta Montblanc (aparo de ouro de 18 quilates, três anéis com banho de metal nobre, corpo negro escuro em resina) se espraie a tinta bordeaux (tinteiros de 50 ml, fabrico alemão) na descrição dos personagens desta história, sem os quais tudo é desperdício, com os quais tudo é possível.
Ela: Miriam, 63 anos, filha de Pampilhosa da Serra. Aos 13 notabilizou-se na escola C+S local por apreciar o canto lírico quando as melodias de sempre (Artur Garcia, Natalina José, Maria de Lurdes Resende) ainda faziam sucesso. Estudou com Elvira Oleiros, natural da terra homónima, antes, durante e depois da mudança da idade, do furor hormonal, da definição das formas que suscitam fantasias eróticas. Candidata a uma bolsa de estudo em Lisboa, representou Lucrécia (A violação de Lucrécia, Britten) no exame final. Quando agarra o punhal para se suicidar (ultrajada pela violação de que fora alvo), salta-lhe à vista a banalidade comercial que destrói a tensão artística: na cutelaria tenente não há chambão que aguente. O ataque de riso não lhe devolveu a castidade e transformou o conservatório gratuito numa miragem. É professora na Almirante Reis, vertente soprano lírico. Solteira, não faz domicílios, mas ensina homens na arte do bel canto.
Ele: Augusto Manuel, investigador de física quântica, 57 anos. Divide a sua vida entre o laboratório, a música sul-americana (boleros, tangos, milongas) e a ópera (Puccini, Mozart, Verdi – vai a um Wagner com dificuldade). Desde os 10 anos que é detentor de um espírito de observação invulgar e incontrolável, alvo de teses publicadas nas revistas da especialidade (Observar é ser feliz? Publicação conjunta da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, Outubro de 2008). Dança milongas com mestria, quer cantar ópera ao mesmo nível. Soube de Miriam (Dona Miriam, Miá para as amigas) na farmácia do bairro, quando comprava um colírio.
No mesmo elegante bordeaux (tinteiros de 50 ml, fabrico alemão) sigamos para a narrativa que aqui nos traz antes que os leitores fujam para blogues mais sintéticos.
Pois eu explico-lhe, engenheiro Augusto Manuel. Sou uma professora exigente e tenho um método próprio. Não cantaremos só, porque senão pouco mais seríamos que aves canoras. Alio o vocalizo à História, o solfejo à sensibilidade artística, a decifração de sinais à erudição musical. Entende-me, Engenheiro Augusto Manuel?
O homem da física quântica (a energia de um oscilador muda em forma discreta, aumentando num quantum de energia que depende da frequência: E=nhf) acena em concordância e os seus olhos processam imagens à velocidade da luz. Vê a entrada, uma estátua de Santa Cecília em marfinete na sua suave beleza de padroeira dos músicos, uma arca de pinho e duas velas grandes de onde exala um intenso perfume a sândalo. Vê a cozinha e um fogão tapado com um naperon de romãs tridimensionais, uma fruteira com três andares circulares e concêntricos em loiça, um quadro branco onde se escreveu lixívia, piaçaba, farelos, amor e música, prenda Rosalinda. Vê a sala pejada de retratos de Maria Callas, Tito Gobbi, Gino Bechi, Renata Tebaldi, outros. Vê uma fotografia de D. Miriam vestida de Marguerite, com uma legenda a itálico dourado Ah! Je ris de me voir si belle dans ce miroir e um fundo de fruteira de loiça com andares concêntricos. O Engenheiro não vê mais nada, porque tudo o resto está fechado aos seus olhos indomáveis.
Na primeira lição (todas as 4ªs feiras, 19.00h, sem atrasos, faz-me o favor) o engenheiro é recebido por D. Miriam (Miá também, mas só para as amigas) vestida de gueixa. Estupefacto, os seus olhos rodam pela entrada, pelo sândalo, pelo quadro branco da cozinha (verniz roxo, bodião, pimpinela, amor e música) e não sabe o que dizer.
Quer esclarecer o que vê, engenheiro Augusto Manuel? Se não se importa, por esta ordem: personagem, ópera, autor. Dispensamos outros pormenores, que o tempo urge.
Titubeante, o homem que tudo observa (Observar é ser feliz? etc., etc., etc..) responde Cio-Cio-San, Madame Butterfly, Puccini.
A resposta está correcta. Continuemos a nossa aula (deixa que o verbo continuar realce a frase), porque identificar é aprender.
Na semana seguinte, novo teste: Quer esclarecer o que vê, engenheiro Augusto Manuel?
E o engenheiro, Lúcia, Lúcia de Lammermoor, Donizetti.
E ainda, numa 4ªfeira de Abril: Fenella, A Muda de Portici, Auber.
Ou mesmo numa 4ªfeira de Maio, 19.00h sem atraso, observando D. Miriam vestida a preceito: Desdémona, Otelo, Verdi.
Encurtemos os exemplos, que a freguesia debanda. Passemos para a aula da primeira semana de Junho, talvez mesmo a do dia em que as crianças têm sobre si os olhares do calendário. O Engenheiro da Física Quântica entra e os olhos observam sem parança: Santa Cecília, o pinho, os retratos, a frase do Fausto (ou da Madame Castafiore, se preferirem), o quadro branco (ervilha torta, cera móveis, amor e música, falar calista), uma porta que nunca esteve aberta e onde se observa, na penumbra, uma vela reflectida num espelho de toucador, o aroma dominante de sândalo. À sua frente, D. Miriam (Miá, etc. e tal) está de roupa interior vermelho sanguíneo, sapatos de salto alto de verniz branco pérola, a generosidade do peito a suscitar tonturas, a das coxas a temer apertos.
Quer esclarecer o que vê, engenheiro Augusto Manuel?

JdB   

2 comentários:

Ana CC disse...

Para além da escrita, da história e do cenário imbatível para onde nos remete, anda estou a rir, rir, rir.
Delicioso JdB!

arit netoj disse...

Parabéns pela inspiração em catadupa!
Está arrevesado, direi mesmo um condensado de histórias. Implica uma atenção desmedida para conseguir acompanhar o seu raciocínio.
Algumas imagens estão muito bem achadas!
Beijinhos e continue a "esclarecer o que vê".

Acerca de mim

Arquivo do blogue