09 abril 2013

Duas últimas

Sábado, a convite do meu querido amigo fq, jantámos no convento do Beato. O evento revertia para o Vale de Acór, uma associação que se dedica à recuperação de toxicodependentes. A noite começou com umas pequenas palavras de boas-vindas do Pe. Pedro Quintela, presidente da instituição. Fatalmente, numa sala onde estão 700 pessoas, é difícil impor o silêncio, pelo que o discurso teve um permanente zumbido de fundo. O silêncio imperou quando se rezou uma avé-Maria. Para alguns seria apenas o respeito. Para a grande maioria, estou certo, o silêncio não era mais do que o espaço oferecido ao que é importante e que norteia a vida de tanta gente - a oração. 

Entre fundos angariados e notoriedade ganha, a noite foi um sucesso. Além disso, a comida era excelente, a companhia de primeira água - e havia música para quem quisesse dançar. Eu também me atirei à pista mas, confesso, mais por devoção do que por convicção. Tenho da dança - como tenho, aliás, de muitos outros temas -, uma visão antiquada e que, estou certo, já aqui a partilhei. Em bom rigor, eu sou um homem de chás dançantes. Eu explico - mais concretamente, repito-me.

Alguém me dizia, citando pessoa próxima, que a promiscuidade no metropolitano chama-se animação no recinto de dança. Com efeito, todas as pistas, para evitar espaços vazios que dêem ideia de festa moribunda, são exíguas. Se as 700 pessoas presentes quisessem dançar a mesma música, ocupariam a pista. E outra pista igual, e mais outra ainda... Ora, quem dança não presta atenção, na grande generalidade dos casos, ao espaço vital que cada um de nós precisa à sua volta para bailar com quem escolheu. Uma pista de dança é um local potencialmente perigoso, exactamente por causa desta falta de atenção ao lebensraum individual e momentâneo. Numa pista de dança podem vazar-nos um olho com um cotovelo levantado de forma descontrolada, podem romper-nos um tendão com um salto agulha que se desequilibra no movimento de descida. De facto, há gente que sente um frenesim interior tão grande que tem uma necessidade imperiosa de se agitar furiosamente - quase mesmo desgovernadamente. A dança é uma catarse sem lágrimas, é a expulsão dos demónios  - ou é um momento ridículo.

Dançar é, para mim, um momento de afecto, porque faço as catarses de forma recatada, expulso os demónios comendo trouxas de ovos - e tenho horror exagerado ao ridículo. Dançar não é um movimento de braços e de pernas, mas um movimento do coração, é ensaiar na pista uma coordenação que se repete na vida. Dançar não é chocar com o vizinho, dar encontrões, invadir espaços alheios, ameaçar a integridade física do próximo. Dançar bem a dois é viver bem a dois - é agarrar, aproximar, afastar sem desligar, ensaiar novos passos, rir das dessintonias, comover-se com o sossego de dois corpos enroscados, ouvir a música que marca o ritmo do casal. Sou, decididamente, um homem de chás dançantes.

Deixo-vos com música que é a metáfora da vida: dois corpos que se juntam depois das almas já se terem juntado. Isto sou eu a dizer coisas, que já nasci antiquado. 

JdB  

      

2 comentários:

Anónimo disse...

O assunto dança é para mim um duplo case study. Primeiro, porque nunca tinha perspectivado a dança como um momento tão horripilante. Segundo, porque é impressionante como a percepção de um assunto pode passar de maneira tão igual de geração em geração. Espera-se que a próxima geração se salve. mfm

LA disse...

Ao homem de cha's dancantes - o meu peito ficou a "murmiriar" perante a recordacao dessa intimidade circondada de espaco, bom gosto, elegancia e romantismo. Obrigada.

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