11 novembro 2013

Vai um gin do Peter’s?

                     
O filme «HANNAH ARENDT»(1) aproxima-se do documentário histórico –  imperdível! – em torno da tese mais arrojada e polémica de toda a carreira da filósofa alemã (1906-1975) que inspira o título da película.

A realizadora Margaretha von Trotta, também alemã, começou como actriz em filmes famosos, assinados por Fassbinder, lançando-se depois na realização, onde já é considerada a mais notável do cinema da nova vaga, no seu país. Esta obra confirma a sua qualidade e extremo rigor. Nisso, condiz com Arendt, sendo por isso a melhor forma de homenagear a genialidade do legado da grande filósofa, tão revolucionário. A ponto de, num certo sentido, podermos dividir a história do pensamento ocidental no antes e no depois de Arendt, nomeadamente, pelo salto qualitativo do conceito trabalhado no filme: a banalidade do mal. É discutível quem foi o autor da célebre expressão, entre Hanna e o marido, mas a sua consagração pública coube por inteiro à filósofa(2).

Margarethe von Trotta

Como todas as ideias profundas, ainda que sintetizáveis em fórmulas concisas, também esta foi fruto de anos de reflexão, tendo no epicentro o duplo estudo sobre os totalitarismos de direita ou de esquerda e sobre o mal. Duas faces da mesmíssima moeda, como intuiu Hanna, sempre inquieta em perscrutar e decifrar os mecanismos do mal nas suas exteriorizações concretas. Importava-lhe lidar com a realidade, concentrando-se no presente – o século XX –, sem se evadir em abstracções.

De origem judia (os pais vinham da cidade de Kaliningrado, hoje russa), nasceu na Alemanha, onde completou os estudos, tendo sido discípula de Karl Jaspers e de Heiddeger, com quem teve uma relação afectiva tumultuosa (além de o mestre ser casado, tinha bastante mais idade), o que a levou a pedir transferência para a Universidade de Berlim. Com a subida de Hitler ao poder e a sua imediata oposição política, antevendo com enorme lucidez o que aí vinha, foi presa pela Gestapo, logo em 1933, conseguindo fugir para Paris, onde se radicou até as tropas nazis invadirem França, em 1940. Nova retenção num campo de refugiados, que mais parecia uma prisão, conseguindo outra vez fugir. Nova Iorque era agora o destino, passando pela cidade livre e cheia de sol, que foi calcorreada por revoadas de expatriados da guerra – Lisboa!

Com um percurso itinerante, em slalom por entre inúmeros perigos, o seu destino assemelhou-se q.b. ao do povo judeu. Mais uma entre tantos, mas com final feliz. Nos EUA, refez a vida, acompanhada pelo marido, judeu, radical de esquerda e ex-comunista, com quem tinha uma espantosa cumplicidade intelectual. Era entre a elite académica e intelectual norte-americana que circulava, gozando de enorme prestígio.

Quando, em 1960, o Estado de Israel raptou o ex-dirigente das SS, Adolf Eichmann, a viver discretamente num subúrbio de Buenos Aires, para o julgar em Tel Aviv, Arendt ofereceu-se ao The New Yorker para assistir ao julgamento e fazer a cobertura jornalística...

…E aqui começa o filme, com a reposta óbvia por parte do jornal, honradíssimo por ter uma correspondente de luxo a cobrir o acontecimento mais badalado do ano, se não da década! Em vésperas da partida para a Terra Santa, ainda assistimos aos serões em casa do casal de berlinenses loucos (como Hanna e o marido eram, carinhosamente, apelidados pela amiga escritora), onde o tom exaltado da discussão sobre a legitimidade de tal julgamento, nos preparam para o que depois sucedeu. De facto, face à argumentação comum dos judeus presentes, igualmente académicos, motivados sobretudo pelo trauma de guerra e deixando-se embalar em subjectivismos compreensíveis mas pouco conciliáveis com o discernimento que a justiça pede, o casal objectava que o ponto de partida era ilegal e abusivo por parte de Israel – o rapto. Quando os ânimos ficavam mais acesos, os amigos judeus preferiam vociferar na língua materna – o alemão – deixando de fora os convivas americanos que, em boa verdade, nem se tinham atrevido a entrar num diálogo que remexia num passado de dor nacionalista. Cedia-se à tentação de elevar o tema e toda a defesa a uma questão sacrossanta, como se estivesse em causa a existência do povo judeu. Justiça, sobrevivência e revanche arriscavam, perigosamente, a confundir-se. Qualquer abordagem que procurasse a máxima isenção e racionalidade colocava-se nos antípodas. No limite, confundir-se-ia com diletantismo provocatório, a resvalar para a traição, como se verá. Uma temática e todo um modo de interpretar a realidade autenticamente fracturantes.

Embarcamos com Hanna para um país em construção, invadido pela areia seca e amarela do deserto do Médio Oriente. Gente apressada e pouco arranjada cruza-se com a viajante de Manhattan, nas ruelas de traçado sinuoso, típicas das povoações tradicionais. Apercebemo-nos que ali se pisam caminhos muito antigos, cheios de ecos de gerações recuadas, onde se sente o peso da história. A par do entusiasmo febril de uma nação recém-formada, hostilizada pelos países vizinhos e alimentada pelas hordas de imigrantes hebreus que a vão povoando, finalmente acolhidos na Terra Prometida. A filósofa observa tudo, entre curiosa e algo distante, pois apreciava a abordagem racional que a atmosfera reinante não favorecia. Os encontros com os amigos judeus, que conhecera na Alemanha e em França, são muito calorosos. Porque a notável argúcia intelectual de Hanna em nada perturbava a sua afectividade riquíssima e híper esclarecida. Mesmo nisso é fundamentada até ao tutano, como o prova a relação profunda e livre com o marido. Como só eles sabiam vivê-la, serenamente e de forma – dir-se-ia – tão positiva para ambos.    

No julgamento, onde a realizadora intercala com imagens de arquivo factuais, para assistirmos ao que Arendt viu, Eichmann está resguardado da exaltação do público numa redoma de vidro, com uns auscultadores para acompanhar a versão traduzida dos testemunhos em hebraico. Tudo no filme decorre nos idiomas originais, ora inglês, ora alemão, ora hebraico. Igual à realidade.

Os 3 juízes do processo são todos fluentes em língua alemã, para não ficarem sujeitos a eventuais lapsos de tradução. Nesse sentido, é tudo muito profissional. Estranha-se o aspecto tão mediano do réu. As suas afirmações, sempre a repisar que se aplicava no cumprimento estrito de ordens superiores, por mais abstrusas que fossem, causam perplexidade. Um mangas-de-alpaca é tudo o que não se esperaria num carrasco, apenas empenhado em obedecer – garante! – com zelo afinal robótico, às instruções mais desumanas. A pergunta sobre a sua avaliação das ordens que cumpria foi formulada, pelos juízes, de todos os ângulos possíveis, quase incrédulos perante tanta aparente docilidade burocrática que, ao pactuar com um projecto de destruição, deixa todos desconfortáveis. Ou incrédulos. O olhar sobressaltado e estupefacto de Hanna, permite-nos acompanhar um pouco a sua reflexão intensa sobre aquela personagem algo inédita, que, a seus olhos, abre uma caixa de pandora sobre a memória do passado. À medida que a tese da filósofa vai tomando corpo, percebe-se que antevê no rosto daquele funcionário medíocre e cumpridor uma nova modalidade de malignidade, própria de quem decide adoptar um comportamento acéfalo. Trágica e comodamente acéfalo, prescindindo de pensar! Parecia estar ali uma combinação insólita e feia de puro burocrata, misto de brioso e irracional (tudo o que não calha!), passivo a receber ordens mas ardiloso e empreendedor na sua execução, acrítico com a engrenagem infernal onde se integra mas voluntarista no papel que lhe cabe desempenhar para a manter, tacanho e inconsequente a interiorizar ordens repugnantes mas q.b. elaborado na sua concretização. Enfim, a pior das misturas. Não obstante, também não seria o agente do mal demoníaco e de contornos apocalípticos. Pelo contrário, esta é a via mais acessível ao comum dos cidadãos, como personificou Eichmann, aos olhos de Hannah. Por isso, é levada a rejeitar a ideia consagrada sobre a grande conspiração satânica onde se inseririam todos os colaboradores nazis. Segundo ela, aquele colaborador estava longe de ser o diabo à solta ou o algoz pérfido que todos esperavam encontrar, embora tivesse praticado actos pérfidos. E, como a maioria não esperava aquilo que viu, teria acabado por não conseguir ver o que não esperava…  


O homem medíocre que se teria deixado despersonalizar para ser peça perfeita de uma máquina de destruição, como os totalitarismos, sustentados pelo profissionalismo de gente comum, tornada supérflua.

Naturalmente, que a interpretação do depoimento de Eichmann pela filósofa é discutível e poderá não ser o exemplo mais convincente para ilustrar a sua tese sobre a banalidade do mal, pois há boas hipóteses de aquele pretenso funcionário rotineiro ser um cínico manipulativo. Mas isso não retira validade à tese de Hannah, aplicável a muitíssimos agentes comezinhos e anónimos dos regimes totalitários, que os serviram com brio e sem querer medir o impacto dos seus actos, causadores de tanto horror.

Assim, o diagnóstico arrojado de Arendt revelou-se incrivelmente revelador sobre a nossa forma de percepcionar a realidade e os mecanismos vulgares de que males tremendos se podem alimentar, como os totalitarismos, que tornam o ser humano supérfluo ao subtrair-lhe a capacidade de reflexão, para melhor o instrumentalizar. Revelador e insidioso – o artigo de Arendt (1963) suscitou de imediato uma reacção violenta. Além da novidade do conceito, sobre a banalidade do mal, levantou ainda uma segunda celeuma, sobretudo entre os judeus, ao referir a cumplicidade de alguns chefes da Cruz de David com as elite nazis e os guardas dos Campos de Concentração. Claro que esses estavam entre os sobreviventes… A bomba rebentou e os efeitos não se fizeram esperar. Perdeu muitos amigos e coleccionou milhares de inimigos. Mas ganhou o combate da história, pois enriqueceu a forma de raciocinar das gerações seguintes.

O rigor foi-na salvando, em cada novo desafio. Aplicava-o, sobretudo, na linguagem, onde o domínio da palavra lhe facilitava a capacidade de ajuizar as diferentes posições humanas. Exemplos: ao israelita que veio de Tel Aviv para a «avisar» que desistisse da publicação controversa a propósito de Eichmann, responde desarmando-o: isso não é um aviso mas uma ameaça; na conversa com o amigo que a acusa de não gostar do seu povo, explica: Não amo o povo, só consigo amar os meus amigos. E a ti amo-te; ao aluno que a questionou se atacar os judeus equivalia a atacar a humanidade, clarificou: mas claro, porque os judeus são homens, pelo que resulta num ataque à humanidade (note-se que não disse: ‘a toda’ a humanidade).

No filme – que espelha o sucedido – Hanna esclarece bem que não está a ilibar Eichmann mas a explicar o tipo de erro cometido: «O pior mal no mundo é o cometido por pessoas vulgares, o mal cometido sem motivos, sem convicções, simplesmente por pessoas ordinárias que renunciaram à sua dignidade humana. (…) Não escrevi que defendia Eichmann. Tentei estabelecer o laço entre a mediocridade chocante do homem com o horror dos factos. (...) Trata-se de compreender, não de perdoar

A incredulidade com que reage às críticas ferozes de que é alvo também dão nota da sua pureza de carácter, algo naïve na busca dos factos, sem prever as repercussões mediáticas das suas afirmações. Sedenta de seguir num trilho de verdade e de o aprofundar, sem hesitações, ficou magoadíssima com os ataques de ordem pessoal (quase todos), de quem nem sequer lera uma linha do que escrevera. Não pôde, portanto, contar com críticas construtivas. Mas não se coibiu de fazer uma séria auto-avaliação, assumindo que cometera um erro. Havia uma contradição no seu postulado: os termos «banalidade» e «radicalidade» não eram compatíveis, porque o mal não é radical, apenas extremo. Só o bem pode ser profundo e radical.


O sentido de humor, muito acutilante e carregado de ironia, é bastante característico do seu tipo de perfil psicológico e intelectual, somando coragem à craveira intelectual. Os exemplos multiplicam-se, no filme e na introdução à reedição do seu livro, em 2007, que está disponível online (link: http://malomil.blogspot.pt/2013/02/arendt-em-jerusalem.html9 de Fevereiro de 2013 ). Num desabafo com o marido sobre as razões por que as outras professoras universitárias faltam tanto, observa: dizem que por se terem divorciado, enfim, estas coisas de americanas. Certeira também no comentário à última declaração de Eichmann, depois de lido o veredicto de pena capital:

O condenado à forca – «Em breve, meus senhores, voltaremos a ver-nos. É esse o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Jamais as esquecerei!».
Hanna – «Perante a morte, ele não encontrou senão o cliché usado na oratória funerária. No patíbulo, a sua memória pregou-lhe a última partida; ficou ‘extasiado’ e esqueceu-se de que estava no seu próprio funeral. Foi como se naqueles últimos minutos ele condensasse a lição que o seu longo percurso de perversidade humana lhe tinha ensinado – a lição da terrível banalidade do mal, desafiadora da palavra e do pensamento.»

Impossível não terminar com as palavras da filósofa, que nos ensina a observar e a discernir, para nunca nos privarmos de ser humanos: «Exercer uma influência, eu? Não, o que quero é compreender.  A necessidade de compreender tomou conta de mim  desde muito nova.» Daí a sua enorme bravura a encarar a realidade, pura e dura…

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

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(2) É na carta de um filósofo amigo de Arendt que se alude ao facto de a designação poder ter sido inventada pelo marido de Arendt, que se penitenciaria por ter sido a causa involuntária da avalanche de ataques que se abateu sobre a mulher. Mas, como rezava na carta, pouco importava a autoria da expressão, pois fora responsável pela sua fundamentação e disseminação, espalhando-se como um rastilho e enorme estrondo! Nesse sentido, era inequívoco que lhe pertencia em pleno.
Título original:
HANNAH ARENDT
Título traduzido em Portugal:
HANNAH ARENDT
Realização:
Margaretha von Trotta
Argumento:
Margaretha von Trotta e Pam Katz
Produzido por:

Fotografia:

Banda Sonora:
André Mergenthaler
Duração:
113 min.
Ano:      
2012
País:
Alemanha
        Elenco:

Barbara Sukowa – Hanna
Axel Milberg – marido de Hanna, Heinrich Blüscher
Janet McTeer – a amiga indefectível de Hanna, Mary McCarthy
Klauss Pohl - Heidegger

Local das filmagens:

Israel, Luxemburgo e Alemanha (Westfália)

Site oficial:

http://www.zeitgeistfilms.com/film.php?directoryname=hannaharendt

Prémios

Prémio Lola (óscar alemão) para Melhor actriz dado a B.Sukowa, e Medalha de Prata dos galardões Lola para Melhor Filme.

No Festival de Denver recebeu prémio de Melhor Argumento e Melhor Som.










No filme, a pose blasée, de cigarro em riste, característica dos anos 50-60.


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