18 agosto 2014

Vai um gin do Peter’s?

Em tempo, para muitos, de descanso e de deixar fluir o pensamento com liberdade e horizonte, sobretudo para quem goze as férias junto ao mar, vem a propósito o escrito de Miguel Esteves Cardoso (MEC), a eleger como o verbo mais valioso na vida – salvaguardar. Salvaguardar para fazer crescer e aprofundar. Ninguém como o MEC para dissertar com humor sobre o movimento mais ousado e, simultaneamente, subtil da alma humana, quando se empenha em manter um rumo para poder chegar a um destino, sem deambular em volta de si própria, confundindo agitação com caminho realmente percorrido. 

Numa imagem muito expressiva, um jesuíta lembrava a uns amigos em começo de vida que, por mais potente que fosse um veleiro, só conseguiria aproveitar bem o vento se o skipper soubesse onde queria chegar.  

Voltando à reflexão do MEC: desafia-nos pelo confronto simbólico entre o agitador rebelde que hoje faz tanto furor e o continuador. Ou o criador-compulsivo versus o guardião que procura valorizar a opção onde mais e melhor se avança para um presente aprofundado e que pede – como todo o coração humano – para superar a precariedade do aqui e agora, a fim de alcançar uma certeza a que poderíamos chamar de futuro ou, melhor ainda, de eternidade. Essa sim, uma reivindicação que revoluciona a existência humana, como nenhuma outra. Só que por dentro, apenas afinando o olhar. Parece tão pouco, tal a falta de algazarra e pompa, mas é tanto... A ponto de o MEC ter arriscado um título insólito para uma sociedade viciada em somar o maior número possível de novidades fogazes, a todos os níveis, viciada no imediatismo e na adrenalina fácil, sem a menor motivação para apostar no crescimento gradual, alimentado a paciência e constância. Nas palavras do cronista: «Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. (…) As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.»

O que superabunda é o arranque espalhafatoso dos arrivistas e a pose importante dos eternos críticos, que se consomem na voragem da fama por um instante, para depois tudo se esfumar em nada, como um fósforo.

É claro que a imagem de marca das celebridades também ajuda a induzir-nos nestes erros de percepção infantis, sendo os Stones dos casos mais flagrantes. Em boa verdade, o segredo que sustenta o grupo é o oposto da imagem que cultivam em palco, entre a irreverência e a alegada liberdade total – que são talvez os adereços mais chiques e sedutores da nossa época! Só que, mal chegam aos bastidores, ondem passam 99% da sua vida, e descontando o folclore do rol de amigas do Mick Jagger(1) e mesmo assim…, entram numa disciplina férrea, levando um dia-a-dia de enormes cedências, logo a começar pela forma dolorosa e hábil com que aceitam trabalhar em equipa, apesar de se detestarem q.b. Sim, especializaram-se em engolir sapos e elefantes com o maior dos fair play, como se fosse coisa boa e facilzinha… A ponto de nenhuma tia-avó já ter nada a ensinar-lhes, neste combate silencioso e duro, que nunca atrai aplausos! Perseverança e combatividade, rigor e profissionalismo são, afinal, os talentos bem escondidos e nada in, que lhes tem permitido superar a natural tendência para a desagregação e o desaparecimento, ou melhor dito: a morte. Não por acaso, já são campeões de longevidade no universo híper volúvel do rock!  

A palavra ao MEC:         

Alimentar o Amor

Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.

Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.

É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.

É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.

É tão fácil ser rebelde. Fica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.

Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.

Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.

Miguel Esteves Cardoso, in «As Minhas Aventuras na República Portuguesa»
 (2) 


Bom Verão a todos, com óptimas leituras!


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Até o vocalista foi descrito pela última namorada norte-americana (que precipitou o fim da sua vida), como um homem híper disciplinado.  Lá está: conheceu em primeira-mão a faceta mais real do Mick, que só passa nos bastidores.

(2) Uma edição da Assírio & Alvim, com uma capa muito frondosa e verde, mesmo a saber a férias.


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