02 novembro 2015

Vai um gin do Peter’s?

Um dos clássicos do cinema, que vale a pena rever de quando em vez, é o lendário «ON THE WATERFRONT»(1), com um título em português pouco sugestivo: «Há lodo no cais». A tradução espanhola até resultou das mais felizes: «La ley del silêncio», a par da brasileira, que vai directa ao ponto quebrando o suspense que os europeus procuraram preservar: «Sindicato de Ladrões».

Assinado pelo realizador americano de ascendência grega ortodoxa, com raízes judaicas e nascido em Istambul, Elia Kazan mudou-se para os EUA aos 4 anos. E foi esta a pátria que amou com todas as suas forças, considerando-a o país da liberdade, por excelência. Considerava que «America is a dream of total freedom in all areas».

Apesar de premiado com 8 Óscares, em 1954 (quando as estatuetas eram atribuídas com mais critério), Globos de Ouro e Baftas dos mais significativos, à época causou enorme polémica por expor a mafia instalada no sindicato do poderoso porto de Nova Iorque. Tinha demasiada qualidade para poder ser ignorado e banido, com banda sonora de Berstein, fotografia a preto-e-branco lindíssima, além da interpretação magistral de Marlon Brando, que não o reconheceu quando viu o filme no estúdio saindo porta fora envergonhado com o seu desempenho. Com o tempo, os ânimos acalmaram e o filme entrou serenamente para o Top 10 das melhores obras da Sétima Arte. 

O argumento inspira-se na reportagem jornalística de Malcolm Johnson, premiada com o Pulitzer. A trama, baseada em factos verídicos, começa por ser muito prosaica, acompanhando a existência de um rapaz pobre, igual a tantos outros, treinado para sobreviver a qualquer preço. A violência entranhara-se-lhe na pele, desde tenra idade, regendo o seu dia-a-dia. Percebe-se a atracção pelo ringue e depois a necessidade desse ex-pugilista – Terry,  encarnado por M. Brando – fazer biscates para ganhar a vida, no porto de Nova Iorque. 


Também faz sentido ser bem acolhido pela máfia sindical, passando a mercenário incumbido de impor à maioria as regras absurdas de um sindicato despótico, onde qualquer assomo de protesto era calado pela força. Chamavam-lhe a lei do D&D (deaf and dumb), na abreviatura inglesa, obrigando todos a funcionar como surdos-mudos.

Estranho, mas igualmente verídico, foi, a dada altura, o tal mercenário ponderar uma mudança de vida para se regenerar! Grande revolução os valores maiores entrarem no horizonte mental de um rapaz que vivia imerso no imediatismo, puro e duro. De forma directa, interpelava-o a Justiça. Mas, de forma mais velada, deixara-se tocar pela própria de Verdade, i.e., por aquilo que a realidade é, sem os enviesamentos calculistas com que a acabamos por a achatar segundo os nossos interesses individualistas e autistas. Daqui irrompem sempre histórias muito criativas e factuais, daquelas de carne-e-osso, que entram para a História.

Fluindo com um realismo levado ao fio da navalha, a cena de abertura emite logo um primeiro e ínfimo sinal de dissonância num status-quo que parecia imutável, quando um estivador ainda novo (Joey) é selvaticamente atirado de um terraço abaixo, como se fosse um boneco. Era a sorte que esperava os que ousavam colaborar com as autoridades, rompendo o muro de silencio dos D&D.  Ora, Terry servira de isco para a vítima ser encurralada no terraço, mas ficara visivelmente desconfortável com um desfecho tão excessivo. Não tanto pela violência, a que estava habituadíssimo, mas por terem sido atropeladas regras mínimas de lealdade e de bom senso. Curiosamente, Terry era o único criador de pombos no seio das cúpulas sindicais, dominadas por falcões. Aprendera com os seus amigos pombos a fidelidade até à morte, às pessoas e aos princípios, por pouquíssimos que fossem (e eram), uns e outros. No fundo, não alinhava totalmente com o núcleo duro, cujo capo apostava fortemente nele.

Após o homicídio de Joey, aparece a família e a irmã desesperada a reclamar justiça, querendo romper o tal muro de silêncio, onde os assassinos prosperavam impunemente. A tentar acalmá-la, o padre amigo católico, pede-lhe tempo e fé, prontificando-se a recebê-la na Igreja. Réplica pronta da rapariga: Conhece algum santo que se tenha escondido na Igreja?

Mais brechas vão emergindo sub-repticiamente, alterando os comportamentos de alguns. Inspirado pelo alerta da rapariga, o sacerdote adopta o porão dos navios de carga como púlpito dos sermões incisivos, de denúncia frontal e a instigar à sublevação cívica dos estivadores, para se emanciparem do pesado jugo sindical. Não poupava nas comparações mais radicais, que deixavam os chefes sindicais à beira de um ataque de nervos: sim, Cristo voltava a ser crucificado em cada estivador maltratado e injustiçado.

 Como se fosse pouco no adensar da trama, Terry fica tocado por uma loira colegial e bondosa, que calha a ser a irmã da vítima, em cujo crime estivera involuntariamente envolvido. Percebemos que o seu temperamento frontal não lhe permite negar tal evidência. Nem essa nem nenhuma. Indomável até à medula, nada o fazia dobrar, nem mesmo a lei marcial dos chefes sindicais, de quem calhava a ser amigo. Só estímulos positivos o influenciavam, provando haver um lado muito benigno na sua natureza rebelde, mas com um fundo de verdade notável. Até porque coragem não lhe faltava. Também do lado da loira, a somar aos outros encantos, havia uma assertividade e bravura que não daria para passar despercebida. E não passou, claro.


Aos poucos, assistimos à viagem de um ser humano em crescimento, revelando as possibilidades inimagináveis de um coração que resolve bater-se pela justiça, com tudo o que isso implica, nomeadamente cortar com a engrenagem do mal a que pertencera.

Previsivelmente, o gang intratável dos sindicatos reage da pior maneira. Considerando-se, afinal, dono dos seus membros, qualquer tentativa de afastamento é taxada de traição, punível com pena de morte. No seu curtíssimo  e intolerante modelo de sociedade, não existem dissidentes vivos. Só dois grupos podem e devem coexistir, como em todas as ditaduras: o pequeno núcleo de líderes açambarcadores dos recursos e uma comunidade numerosa de gente à sua mercê, praticamente escravizada.

Imprevisível é a forma como Terry enfrenta a máfia e os vai neutralizando, sem disparar (a contragosto) uma única bala, que se afiguraria a única solução eficaz. Guiado e até atrapalhado pelos insólitos conselhos do padre, demasiado pacifistas e inadequados para uma guerra clandestina, o recém-convertido rebelde acaba por criar uma frente de combate que se revela incrivelmente eficaz, apenas sustentada numa causa Justa.


Quem diria que esgrimir uma arma tão etérea seria suficiente para derrubar o arsenal militar dos mafiosos. Faz para o caso, esta luta ter sido travada nos Estados Unidos, o expoente da democracia, segundo o realizador, onde as instituições – entre a sociedade civil representada pelo sacerdote e pela maioria silenciosa dos trabalhadores que a dada altura despertam, a justiça e as forças policiais (com uma intervenção muito profissional no filme) – são o melhor garante do Estado de Direito. Por isso, os pobres acabam por ficar menos expostos aos exploradores, enquanto os criminosos tendem a ser punidos. 


De algum modo, a recomendação de Sophia ecoa abundantemente pelo filme, em especial nas personagens do P.Barry e de Edie – “Vemos, ouvimos e lemos./ Não podemos ignorar.” Confirma-se quanto a resposta ao grito da Justiça franqueia sempre a possibilidade de abrir um caminho melhor para a humanidade, sobretudo em favor dos sem-voz. Terry revela ainda o espectáculo extraordinário de um ser humano que resolve tornar-se boa pessoa. Ainda bem que não ignorou, como sugere a poeta (nunca poetisa). 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA:
Título original: ON THE WATERFRONT   (com Óscar do Melhor Filme)
Título traduzido em Portugal: HÁ LODO NO CAIS 
Realização: Elia Kazan  (Óscar) 
Argumento: Budd Schulberg  (Óscar).
A partir da publicação de reportagens jornalísticas de Malcolm Johnson, publicadas no New York Sun e  premiadas com o Pulitzer.
Produzido por: Sam Spiegel
Banda Sonora: De Leonard Bernstein
Duração: 108 min. 
Ano:       1954
País: EUA
        Elenco:
Marlon Brando  (Terry Malloy; Óscar do Melhor Actor) 
Eva Marie Saint (Edie Doyle; Óscar da Melhor Actriz Secundária)
Lee J. Cobb  (Michael J. Skelly, conhecido por "Johnny Friendly")
Karl Malden (Padre Barry)
Rod Steiger (Charley, conhecido por "The Gent" Malloy)


Prémios: 
- 8 dos principais Óscares em 1954, nomeadamente de  Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento , Melhor Fotografia, Melhor Montagem, Melhor Actor, Melhor Actriz Secundária.  
- Bafta em 1954 (Reino Unido) - Venceu na categoria de Melhor Actor Estrangeiro p. Marlon Brando.  
- Globos de Ouro 1954 (EUA), nas categorias de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Fotografia.
- Em 1989, a Library of Congress classifica-o como uma obra relevante «cultural, histórica e esteticamente», pelo que é seleccionado para ficar guardado no arquivo do National Film Registry. 
- Em 1997, o American Film Institute considerou-o o 8º Melhor Filme de todos os tempos.
             


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