03 dezembro 2015

Das distâncias

René Magritte, La Reproduction interdite, 1937

Já aqui falei um dia sobre a distância com que olhamos para as coisas (sendo que coisas podem ser objectos, pessoas, associações, vidas, rostos): se nos aproximarmos muito só vemos os pormenores. Pode ser um detalhe que encanta ou um pormenor que desfeia. Num rosto é um nariz bonito, uma boca assimétrica, um sinal medonho. Numa vida é uma fotografia, não uma sequência de. Numa pessoa é uma característica, não um plano geral. Se nos afastarmos muito somos um ponto, apenas - sem dimensão, que é o zero da existência. Pode existir tudo e lá no fundo, quase esbatido contra o fio do horizonte, um ponto que não é nada: pode ser uma mosca, um carro eléctrico, uma existência sofrida. O segredo é, portanto, a distância a que observamos o nosso mundo em redor, o universo das coisas que nos importam. Não aproximar muito para não ver só o pormenor; não afastar muito, para não perder a tridimensionalidade do observável.  

Olharmos-nos (e a conjugação verbal tem relevância) é levantar um espelho à altura do rosto, se consideramos que o rosto é o melhor reflexo da alma humana. Se afastarmos muito o espelho, supondo que o nosso braço se estende até ao limite da vontade, não há nariz afilado, boca carnuda, olhos perscrutantes, testa altiva. Vemos um ponto - o que somos é uma parte do espaço sem dimensões definidas. Se aproximarmos muito o espelho só vemos o pormenor: uma criança que morre, um casal que se beija, um avião que voa. Não vemos o caminho antes e o depois: o que se fez com o drama, que causa e consequência do beijo, os pontos A e B de partida e chegada da aeronave. Colocar o espelho na dimensão correcta permite-nos tudo: ver o pormenor que define, a mancha esbatida que faz sonhar (porque uma mancha esbatida é um vestígio, mais importante do que uma prova) o que somos e a nossa circunstância. Colocar o espelho à altura certa permite ainda outra coisa: ver quem está atrás de nós, porque a superfície reflectora tem espaço para tudo. Ver quem está atrás de nós permite-nos ver os inimigos que nos apunhalam pelas costas mas, acima de tudo, discernir quem vai atrás de nós, de braço pronto para aparar a queda. 

Estes inimigos ou apoiantes devem ser lidos numa dimensão metafórica: inimigo pode ser um passado de que queremos fugir, um segredo que nos dilacera, uma borbulha que disfarçamos com creme persistente; apoiante pode ser a assunção da vida, a abertura à intimidade, o discernimento.

JdB 

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