18 maio 2017

Mi Buenos Aires Querido (IV) - o cemitério


Não tenho o culto de cemitérios: isto é, não os frequento para visitar, rezar ou apenas conversar com os meus mais próximos - num caso específico, muito próximo. Por outro lado, gosto de visitar cemitérios, porque são espaços de silêncio e onde a arquitectura urbana (pode dizer-se assim?) diz muito das pessoas, do culto dos mortos, da importância que os vivos querem dar a si próprios enquanto futuros habitantes daquele espaço. A esse propósito, sugiro sempre, a quem vai a Salzburgo, que visite o cemitério local: jazigos escavados na rocha, árvores lindíssimas que não o já característico cupressus sempervirens que iguala os cemitérios um pouco por todo o mundo. 

O cemitério da Recolecta, em Buenos Aires, é local de visita obrigatória. Um parte substantiva das romarias destinam-se a ver o jazigo onde está Eva Perón, mas acontece que este jazigo específico está muito longe de ser um dos mais bonitos daquela profusão de últimas moradas. 



Hoje em dia muitos de nós queremos ser cremados - não sei se é uma questão de higiene mental ou da memória, de horror ao cemitério ou de dimensão prática da vida. Em minha casa havia quem tivesse horror às gavetas, havia quem tivesse horror a uma agência específica (já desaparecida) porque vira um funcionário a puxar a manga do casaco e, com ela, polir uma canto do caixão - com o finado lá dentro, é claro... Coisas calistas, no fundo. No meu entendimento a cremação não é para todos, mas esta frase requer uma explicação lógica que não existe, porque radica na emoção mais funda e mais difícil de explicar à luz de uma razão.

Na morte somos todos iguais. No caixão somos todos iguais, apesar de todas as diferenças que nos caracterizaram em vida. Lázaro vale tanto como o Rei David; o poderoso Salazar, sobre cuja boca inerte assentou uma mosca desrespeitosa, tem o mesmo peso específico que o indigente encontrado sem vida por baixo de uma camada ingrata de cartão canelado. Na eternidade para os crentes, ou no vazio para os que o não são, todos valemos o mesmo, sendo que para os primeiros há o ajuste de contas com Criador quanto ao que fizemos e fomos em vida. Mas a morada celeste é igual para os bons ricos e poderosos e para os bons pobres e sem abrigo. 


No entanto, apesar desta igualdade das cinzas ou do caixão onde jaz um cadáver, constroem-se jazigos com homenagens, com arquitectura cuidada, com requinte e estética, com pompa e circunstância. Lá dentro está um morto que, no Céu em que acredito, se reveste de uma bondade de dimensão superior, indiferente ao mármore que o rodeou. Mesmo em mortos os estatuto é importante.

JdB

      

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