07 agosto 2018

Textos dos dias que correm

Uma injustiça social de Jesus?

«Estes últimos trabalharam só uma hora, e no entanto tratou-os como nós, que suportámos o peso do dia e do calor» (Mateus 20,12). A parábola evoca, como muitas vezes acontece na pregação de Jesus, a concretude de uma situação social amargamente constante na história da humanidade. A palavra de Cristo não é nem etérea nem aérea, plantando-se antes solidamente no terreno da existência humana. O desemprego e a precariedade são preocupações de sempre. Como é sabido, na praça do mercado, a principal da cidade, estacionavam os jornaleiros, à espera de que um proprietário de terras ou mediador os levasse para trabalhar ao dia.

Sabemos o desenvolvimento da parábola, narrada apenas por Mateus (20, 1-16), retalhada na subdivisão do dia segundo o “relógio” do tempo. Começa-se com a aurora, que é a última parte da noite e a primeira do dia, continua-se com a “hora terça”, ou seja, às nove, passa-se para a “sexta” (meio-dia) e para a “nona” (três da tarde), chegando-se à “hora décima primeira”, na prática as cinco da tarde, no umbral do entardecer e da noite. O pagamento combinado é de um denário de prata, a unidade monetária romana que representava o salário jornaleiro de um operário e o custo médio de um dia, como se diz na parábola do bom samaritano (Lucas 10, 35). O “denarius” tinha a efígie do imperador: explica-se assim a cena do tributo a César narrada nos Evangelhos (Mateus 22, 19).

Estritamente falando, aquele patrão que paga a todos um denário, reservando-o inclusive a quem trabalhou uma só hora da tarde, age, por um lado, corretamente, na base do contrato “separado” estipulado com cada um; mas por outro lado não é certamente um modelo de justiça nas relações industriais. Qual é, então, o sentido da parábola, tendo em mente que não pode ser orientado para a injustiça social? A lição é de índole religiosa e existencial. O proprietário da vinha abre caminho a Deus, que não lesa a justiça (o contrato era justo), mas nas suas relações com a humanidade introduz a superioridade do amor, cuja generosidade vai para além da rígida norma do que é devido.

A humanidade é, com efeito, constituída por pessoas diferentes quanto às qualidades e dons recebidos: desde quem tem cinco talentos àquele que só tem um, para usar ainda uma imagem monetária de outra conhecida parábola de Jesus. Há a pessoa simples que tem poucas capacidades, e quem, ao contrário, se destaca por dons extraordinários; há quem seja doente e frágil, e quem tenha uma saúde de ferro e seja um portento de força; há quem tem uma modesta dotação intelectual e quem é um génio; há a pessoa frágil, que cai em erros e pecados, e há o justo capaz de resistir firmemente às tentações; há quem pertence a uma nação evoluída e privilegiada (Jesus podia pensar nos judeus, «os primeiros»), e quem tenha nascido numa região deprimida e num povo miserável e de escassas disponibilidades culturais e sociais (os «pagãos», os «últimos»).

O importante, diz Jesus, é que se entre no campo da vida com pleno compromisso pessoal. Deus, na sua recompensa final, não adota o rígido critério que se funda nos resultados, mas escolhe a via do amor, que premeia inclusive quem avança trazendo nas suas mãos um pequeno fruto do seu modesto mas real trabalho. A verdadeira imparcialidade é a do amor que coloca ao mesmo nível que recebeu muito e quem pouco teve da vida mas que se consagrou autenticamente à sua vocação, ainda que simples.


Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Famiglia Cristiana
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 06.08.2018

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