07 janeiro 2019

Dos feitios e do que não pode dizer-se

Num certo raciocínio menos óbvio, há certamente um equivalente masculino para a expressão instinto maternal, algo que esteja no outro extremo do mesmo contínuo verbal - e de género, como se diz agora. Talvez seja desejo sexual, à falta de uma ideia melhor e mais ajuizada. O instinto para as mulheres, o desejo para os homens. 

O mundo moderno instituiu a magreza como uma espécie de verdade absoluta, uma quase religião, um modo de vida. Para uma categoria de gente mais aguerrida, os gordos - que vão do excesso ponderal à obesidade mórbida - deveriam pertencer ao grupo dos cidadãos sobre os quais recairia um agravamento fiscal. A outro nível, a gordura, para além daquela que o corpo requer para uma subsistência saudável, é um afastamento da ordem saudável das coisas e o emagrecimento, mais do que uma opção estética, é o arrependimento dos laicos, uma (re)entrada na comunidade dos bons. 

O parágrafo sobre a gordura, a esbeltez e o emagrecimento não é despiciendo. Falamos de ditaduras de opinião, de imagem, de comportamento. Num certo plano da discussão, as pessoas querem-se magras porque isso é saudável, tanto na mente como no corpo. Num outro plano da discussão, as mulheres querem-se com instinto maternal, os homens com desejo sexual. Os planos são diferentes, a ditadura é a mesma: não passa pela cabeça de uma mulher dizer que não tem instinto maternal - embora muitas mulheres não o tenham - como não passa pela cabeça de um homem dizer que não tem desejo sexual, muito embora muitos possam não senti-lo. Por motivos que têm a ver com uma ancestralidade que não consigo discernir, pode reconhecer-se tudo, mas não a ausência de um ou de outro. O combate contra a ditadura do que parece bem tem um desfecho estatisticamente tendencioso.

Não gostamos de reconhecer falhas em nós próprios. Justificamos o que fazemos de menos bem com leituras erradas dos próximos, com erros de análise ou de percepção, com linguagens que os outros não entendem. Mas o facto é que somos o que somos, muitas vezes independentemente de quem está à nossa frente. E o facto, também, é que não realizamos que é verdadeiramente libertador dizermos que somos isto ou aquilo - egoístas, preguiçosos, orgulhosos - e como isso encetarmos um caminho qualquer. Afinal, foi para isto que se fez, não o 25 de Abril, mas o livre arbítrio: nada está escrito sem remissão no nosso cadastro, temos sempre hipóteses de melhorar ou, quem sabe, dizer que não temos instinto maternal ou desejo sexual - e nem por isso sermos menos santos nem amados. 

JdB   

       

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