13 setembro 2024

Duas Últimas

Tudo neste videoclip é bom: o próprio bolero, o nome do bolero (gosto da palavra perfídia), a sensualidade displicente das cantoras, o preto e branco, a possibilidade de serem uma pessoa apenas, tão parecidas que são. A cereja em cima do bolo? O computador Apple, para nos trazer à terra. Tudo nos atira para 1939, quando músico mexicano Alberto Domínguez, num rasgo de criatividade imortal, nos ofereceu esta música. Podemos imaginar-nos na Cuba de Fulgencio Batista Zaldivar e nas noites de folia tropical em Havana. Podemos imaginar tudo isso, mas o computador devolve-nos à Terra, mata-nos o devaneio, retira-nos a ânsia de uma Cuba libre - nos seus mais amplos sentidos.

JdB

***  

Nadie comprende lo que sufro yo
canto pues ya no puedo sollozar
solo temblando de ansiedad estoy
todos me miran y se van

mujer si puedes tu con Dios hablar
preguntale si yo alguna vez te he dejado de adorar
y al mar, espejo de mi corazon
las veces que me han visto llorar
la perfidia de tu amor

te he buscado donde quiera que yo voy
y no te puedo hallar
para que quiero otros besos si tus labios no me quieren ya besar
y tu quien sabe por donde andaras
quien sabe que aventuras tendras
que lejos estas de mi

(bis) 

12 setembro 2024

Do erro *

Franz Kappus escreve a Rainer Maria Rilke confessando-lhe como o passar das suas tristezas é perturbador. Na sua resposta de 12 de Agosto de 1904, Rilke incita-o a considerar se essas grandes tristezas não passaram antes através de si; e diz-lhe: se nos fosse possível ver mais longe do que o nosso conhecimento alcança, e um pouco além dos limites das nossas intuições, talvez então suportássemos as nossas tristezas com mais convicção do que as nossas alegrias». E acrescenta: por que razão haveria de querer excluir da sua vida toda a inquietação, toda a dor, toda a depressão de espírito, quando não sabe que trabalho é que esses estados estão a realizar dentro de si? 

Estas pequenas citações dariam para um artigo sobre tristeza. Mas eu, anarco-revolucionário naquilo que não afecta a riqueza das nações nem a pureza dos costumes, quero fazer um find / replace, e, onde se lê tristeza, passar a ler-se erro. Porquê? Por um motivo prosaico. Afinal, na minha ronda de leituras desta manhã, cruzei-me com o poema abaixo que fala disso mesmo - de erro. E fala, numa leitura minha, pessoal, do erro como espaço fecundo de aprendizagem ou, porque não, do erro de certa forma redentor, que abre espaço à construção de um destino promissor. Não é isto que o poeta quis dizer? Não faz mal, a mim dá-me jeito esta leitura.

JdB

* [Texto aproveitado de um artigo publicado na revista Brotéria (Agosto - Setembro 2024), intitulado Onde firmar os pés sem chão. Manual para ser inteiro, com Santa Teresa do Menino Jesus, de Eduardo Amaral, sj]


***

Dado o caso

Escolhe entre os erros
que tens à tua disposição,
mas escolhe certo.
Talvez seja errado
fazer o que está certo
no momento errado, 
ou esteja certo
fazer o que é errado
no momento certo?
Um passo ao lado,
imposível de corrigir.
O erro certo,
uma vez desaproveitado,
não é fácil que volte a surgir. 

Hans Magnus Enzenberger
(1929 - 2022)
In "66 Poemas"
(Tradução de Alberto Pimenta)

11 setembro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 CRIATIVIDADE DA MADRE TERESA E DO TURISMO PORTUGUÊS

A 5 de Setembro, o meu Pai faria 100 anos. Que saudades daquele grande senhor, pai e professor, por profissão e por vocação, que partiu há 10 anos! Desde 1997, o 5 de Setembro passou a ficar associado à Madre Teresa de Calcutá, festejando o dia da sua morte que, à luz da fé, correspondeu ao nascimento para a eternidade. São incontáveis os episódios e as suas respostas antológicas, em especial com os mais frágeis e também com os mais críticos do seu trabalho junto dos indigentes do planeta. Ainda assim, recebeu inúmeras mostras de consideração, começando pelo Nobel da Paz, em 1979, o acolhimento com honras de Estado nas Nações Unidas e noutros palcos internacionais de prestígio. Diz muito a maior nação hindu do mundo ter colocado a bandeira indiana sobre a sua urna, quando desfilou pelas longas avenidas de Calcutá, sob um sol escaldante, enquanto as multidões se aglomeravam para uma homenagem pública muito sentida. 

Um dos moribundos de uma viela infecta dos bairros proscritos de Calcutá, que morreu nos seus braços, desabafou: «eu que vivi como um cão, vou morrer como e com um anjo».  Um magnata ocidental, a quem a Madre Teresa pediu dinheiro para construir uma das suas casas da Caridade, cuspiu-lhe na mão que a mãe dos pobres lhe estendera. Mas ficou desarmado com a reacção da pequena missionária, que recolheu para si a mão com a cuspidela e lhe estendeu a outra: «Certo, isto é para mim. E agora, para os pobres» (abrindo a palma da outra mão). Tocado, o magnata entregou-lhe um cheque generoso.  

Contou um jornalista espanhol, que se encontrou com a Madre Teresa na casa das Irmãs da Caridade, em Nova Iorque, ter aproveitado a ocasião para a criticar frontalmente por aquele tipo de trabalho, taxando-o de paternalismo eivado de assistencialismo ineficaz. E instava a missionária a adoptar uma intervenção mais política, cheio de conselhos sobre os métodos para erradicar a pobreza. Enquanto se afadigava numa argumentação acalorada (segundo o próprio) baseadas nas suas muitas teorias, a M.Teresa ouvia-o silenciosa e continuava a visita ao berçário das Irmãs, dando festas a um dos bebés abandonados, mudando fraldas a outro, segurando o biberon de outro. Quando se ouviu um choro mais intenso, a Madre acorreu ao bebé desesperado, pegou-lhe ao colo, acalmou-o e depois posou-o nos braços do jornalista para socorrer outro recém-nascido, que começara a chorar. Depois da surpresa inicial, o espanhol olhou para o bebé (confessou, mais tarde, que era a primeira vez que o fazia, naquele berçário), segurou-o com cuidado e, comovido, mudou o chip e converteu-se. O bebé de carne-e-osso com nome, que lhe fora confiado pela missionária albanesa, resultara na melhor definição do que era a caridade real, capaz de chegar a quem precisa. 

Sem ideias feitas, nem teorias, a Santa de Calcutá partilhou algumas das melhores dicas sobre o amor profundo, à escala humana, que suplanta todas as diferenças de etnia, religião, idade, sexo, nacionalidade, matriz cultural, condição social, etc. apenas interessada em ajudar. É eloquente a atitude tolerante e aberta com que ajudou pobres de outras confissões religiosas, assim como agnósticos e ateus, com o objectivo maior de lhes aliviar o sofrimento:  

«As pessoas boas merecem o nosso amor; as pessoas más precisam dele.» 

«If you judge people, you have no time to love them.»

«Peace begins with a smile. (…) Every time you smile at someone, it is an action of love, a gift to that person, a beautiful thing.»

«If we have no peace i tis becausse we have forgotten that we belong to each other.

«We fear the future, because we are wasting the present. (…) Yesterday is gone…»

«Not all of us can do great things. But we can do small things with great love.»   

Bio telegráfica desta mulher que teve a coragem de ir até às periferias infra-humanas da sociedade: nascida no seio de uma família católica da Albânia (então território da Macedónia), em 1910, Agnes Gonxha Bojaxhiu cedo revelou vocação para missionária. Aos 18 anos, entrou para a congregação das Irmãs de Nossa Senhora do Loreto. Começou na Irlanda, mas rapidamente seguiu para um convento na Índia, onde dava aulas. Volvida uma década de vida pacata, pediu dispensa para fundar uma nova congregação, que cuidasse dos muitos sem abrigos com que se deparou. Assim nasceram as «Irmãs da Caridade». Em 1948, já sob o nome de Teresa, adquiriu nacionalidade indiana. Com o Nobel da Paz (1979), a sua obra ganhou projecção mundial, impressionando pela dedicação aos mais desprotegidos, sem medo de contrair doenças, nem repugnância pela degradação humana extrema, que procurava aliviar. Foi beatificada em 2003 e canonizada em Setembro de 2016, pelo Papa Francisco.

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É português o filme premiado, em 2023, com o galardão do Melhor Filme de Turismo do Mundo, no festival de Valência. «ALMA DE Lû («A Soul Made from Wool») foi rodado em 2022 para dar a conhecer a beleza subtil e aconchegante do interior do país, numa zona raiana, onde os lanifícios e a serrania pedregosa se impõem. Sob uma banda sonora magnífica, o mosaico variado de actividades daquela região fluem em acelerado, numa sequência plástica sumamente artística, que fusiona recortes da paisagem montanhosa com teares e outros elementos da região. O argumento parte da história do herdeiro de uma fábrica de lanifícios arruinada, na Covilhã, que Francisco converteu num laboratório de artesanato criativo e experimental, cognominado New HandLab.  A arte, o engenho e a boa vontade resgataram da falência uma velha indústria ameaçada de extinção, reenquadrando o saber milenar de artífices anónimos:  

https://lobbyproductions.com/video/newhandlab-a-soul-made-from-wool/

Também da Covilhã, outro filme premiado (com um bronze) tem um título igualmente poético para promover Pampilhosa da Serra, Arganil e Góis. A história segue o olhar curioso, inexperiente e límpido de uma criança, para a redescoberta de uma paisagem diferente, mas que nos cansámos de banalizar por falta de silêncio e de simplicidade para lhe reconhecer o fascínio e até a magia: 


Por seu turno, a medalha do público recaiu sobre a curta-metragem de Leonel Vieira, dedicada à vila fronteiriça do Alto Minho – Monção – orgulhosa dos seus pergaminhos ancestrais: 


Igualmente de inspiração medieva, o Museu do Oriente (parte Norte da Doca de Alcântara) oferece um concerto a 30 de Setembro, às 19h00, onde serão interpretadas cantigas das três grandes culturas que se entrecruzaram na Península Ibérica, nos séculos XIII e XVI: cristã, sefardita e árabe. Eduardo Ramos será o vocalista e tocador do alaúde árabe, enquanto Carlos Mendonça o acompanhará à  flauta e na percussão. O espectáculo integra-se no Ciclo de Concertos da Antena 2, com entrada livre, mas sujeito à lotação da sala, pelo que será necessário levantar bilhete no próprio dia.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

10 setembro 2024

Pensamentos e poemas dos dias que correm

 As frases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dito à minha inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho frases inteiras, perfeitas palavra a palavra, contexturas de dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movimento métrico e verbal de grandes poemas em todas as palavras e um grande entusiasmo, como um escravo que não vejo, segue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde queria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do nexo vital que uniu o murmúrio rítmico não fica mais que uma saudade longínqua, um resto de sol sobre montes afastados, um vento que ergue as folhas ao pé do limiar deserto, um parentesco nunca revelado, a orgia dos outros, a mulher, que a nossa intuição diz que olharia pra trás, e nunca chega a existir.


Bernardo Soares, in "Livro do Desassossego"

***

Eu Queria Ter o Tempo e o Sossego Suficientes

Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes 
Para não pensar em coisa nenhuma, 
Para nem me sentir viver, 
Para só saber de mim nos olhos dos outros, reflectido. 

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 

08 setembro 2024

XXIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 7,31-37

Naquele tempo,
Jesus deixou de novo a região de Tiro
e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia,
atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar
e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, afastando-Se com ele da multidão,
meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu,
suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem,
soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar corretamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava,
tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam:
«Tudo o que faz é admirável:
faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

06 setembro 2024

do ténis e do ballet

 

Tenho do ténis, como tenho de todo o desporto, uma visão amadora. Nunca tendo praticado de forma sustentada nenhum desporto, sou atraído pelo que me diverte ou entretém, pela estética, pela qualidade que identifico com o meu olhar pouco sabedor. Do ponto de vista dos tenistas a minha ordem de preferência vai (sem ser forçosamente por esta ordem) a nacionalidade, se são canhotos ou destros, uma certa elegância a jogar. Por isso nunca gostei do Nadal; embora canhoto e espanhol (a favor / nada contra), sempre lhe encontrei uma certa rudeza - seja física, seja na forma como joga. E por isso sempre gostei do Federer; embora destro e suiço (nada contra / menos a favor) sempre lhe encontrei uma certa elegância, seja física, seja na forma como joga. e até na forma de se exprimir.

Pessoas próximas falaram-me e enviaram-me este video, que fala na ligação entre o ténis e o ballet. Vale a pena ver, até porque são pouco mais de 3 minutos. Achei curioso, porque explica muito do meu gosto por ver o Federer jogar.

JdB  

05 setembro 2024

Dos sonhos incomodativos

Nunca fui homem dado a pesadelos, felizmente. Mesmo nos tempos mais desafiantes da minha vida - e alguns foram-no - o meu maior pesadelo era acordado: a certeza da insónia e do que a provocava. Nunca acordei a suar, com taquicardia ou com uma sensação de pânico. 

Curiosamente, os meus sonhos mais incomodativos tiveram sempre como pano de fundo a minha vida profissional. Uma vida profissional, diga-se de passagem, que nada de muito relevante tem a assinalar: comecei por baixo e fui subindo até ao limite da minha competência; nunca fui vítima de conluios nem ataques pessoais relevantes. Fui, talvez sim, vítima de um menor entusiasmo profissional num tempo difícil, que coincidiu com um época de mau ambiente na empresa. Quando tive de sair fi-lo com a consciência de que já não era a pessoa certa no lugar certo. 

O pesadelo - talvez "sonho incomodativo" seja mais correcto - seria facilmente explicável pelo Freud (confesso que nunca li A Interpretação dos Sonhos) ou por um psiquiatra - ou talvez por um charlatão. Eu conto: vejo-me a entrar na empresa onde trabalhei 20 anos, embora a arquitectura seja diferente. Dou por mim a não saber onde está o meu gabinete e isso provoca-me ansiedade. Não estou perdido - simplesmente o gabinete desapareceu. Uma colega (que reconheci) pergunta-me, face ao meu estado de ansiedade: quer sentar-se um pouco? Percebo que há mais pessoas na minha situação. Questiono-me se devo falar com o meu chefe (um homem que já tinha morrido há meia dúzia de anos) e sugerir que se antecipe a minha saída. Mostram-me então uma lista com mudanças e indicam-me o meu novo gabinete: é um espaço sujo, relativamente estreito, com uma secretária e um candeeiro velho no chão, um pé direito muito alto (muito alto, mesmo) e umas obras artísticas grandes (parecem-me mais azulejos do que pinturas, não consigo identificar o que são) que acompanham a altura das paredes. Uma pessoa que não reconheci explica-me, simpaticamente, o que são. O sonho acaba.

Um psiquiatra, repito, explicaria facilmente por que motivo os meus sonhos incomodativos estão sempre ligados à empresa. Saí a bem, voltaria de bom grado para re-visitar espaços e pessoas se a fábrica ainda existisse. Não deixei inimigos e parti com um punhado significativo de boas recordações, algumas amizades que ainda sobrevivem ao desgaste do tempo e do afastamento físico. Alguém me explica o que quer isto dizer?

JdB 

Alucinações dos dias que correm

 

04 setembro 2024

Da importância das palavras *

 Um dia destes, na minha ronda de blogues, encontrei um pensamento. Alguém se questionava sobre o que o salvava do caos, sendo que a resposta reiterada era: a palavra. O sentido era este, se bem que o reproduza de forma obscenamente simplista. Não sei se poderei dizer o mesmo sem que se adivinhe uma presunção a que não quero atirar-me. Não obstante, estou em crer que a palavra escrita desempenhou uma grande importância nos momentos - e foram alguns - em que o caos se instalou dentro de mim com ideias de ficar.  

Porque escrevo - seja no blogue, nos textos académicos que se prendem com temas que me tocam, nas cartas que envio aos que me estão mais próximos, nas frases com que invado de forma maçadora a caixa de correio alheia? Porquê? Para ordenar a desordem, para organizar o caos, para alumiar um  buraco, para iluminar um caminho, para encontrar sentido para as coisas. Escrevo para mim próprio, sobretudo, mesmo que disfarce a tontaria - ou uma aparente vaidade - dirigindo-me aos outros. Estou tão certo disso como do meu número de contribuinte que fixei há anos. 

(Também o faço por divertimento, mas porque não poderá ser isso considerado uma terapia, passe o exagero?) 

Tem isto alguma relevância? Não, a não ser para mim. Para os outros são violações do sossego próprio, frases cujo sentido nascem e morrem dentro de mim, apesar dos que me conhecem o suficiente para entender os subterfúgios ou as bizarrias. É por isso que envio mais do que recebo, lutando interiormente contra a ideia da desilusão que advém de uma contabilidade desencontrada. Afinal, o combate ao caos é essencialmente solitário, e cada um sabe como fazer o seu. Perceber isto é perceber muito, porque o deve e o haver da vida estão longe de serem iguais. Felizmente, direi eu, apesar de tudo... 

JdB 

* publicado originalmente a 21 de Agosto de 2014

03 setembro 2024

Poemas dos dias que correm

 Pecados capitais 

Cada vez que tive vontade e pude
entreguei-me à gula e à luxúria.
Com a preguiça vivo amancebada.
Só fui seduzida pela avareza
como meio para outros desvios.
Sempre me mostrei irada e soberba,
orgulhosa, arbitrária e teimosa.
Talvez por isso não sentisse inveja.
Tão segura de mim, tão inflexível,
não podia invejar nada nem ninguém.
Hoje, contudo, derrotada e só,
sem esperança e vencida, tão inútil,
sinto inveja de mim quando me amavas. 

amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013

02 setembro 2024

Dos Setembros da minha juventude

 

September

The sun shines high above
The sounds of laughter
The birds swoop down upon
The crosses of old grey churches
We say that we're in love
While secretly wishing for rain
Sipping coke and playing games 

September's here again
September's here again

* música partilhada ontem no Linkedin pelo meu amigo João Silva, e que eu não conhecia.

***

Em Julho de 2016 escrevi um texto para a Raquel, mulher do JdC, texto esse que girava à volta de uma história passada com ela em Moçambique: os miúdos apareciam-lhe em casa e, quando lhes era perguntado o que queriam, respondiam kungokhala (uma palavra que em Chichewa quer dizer só ficar) . 

Fui repescar uma parte desse texto (quem quiser ler o post completo pode fazê-lo aqui) porque fala dos Setembros da minha juventude, e a lembrança desses tempo é uma espécie de regresso a casa. É um texto saudosista, eu sei, mas, como digo sempre, o passado é certo, o futuro não existe até prova em contrário. 

Dino Meira compôs uma música a que chamou O meu querido mês de Agosto, Ruy Belo escreveu um poema que intitulou Como se estivesse em Agosto. Para mim, e roubando o título de uma crónica antiga de João Bénard da Costa, os dias de Agosto são dúbios. Certos, certos, como o são as minhas memórias, são os meses de Setembro. Eis, pois, o excerto que fala dos Setembros da minha juventude. Para algumas pessoas, a juventude é um local imaterial de refúgio para momentos atribulados. 

***

Penso que já terei escrito algo sobre este aspecto das minhas férias de juventude: durante alguns anos, talvez dos 13 até aos 24 ou 25 passei férias regulares em casa de amigos e primos no Alentejo. Era Setembro, e a casa enchia-se de gente, do cheiro a petróleo que substituía a electricidade, da emoção dos cigarros fumados às escondidas, do odor a sopa de cação ou de beldroegas, da música ouvida num pick-up a pilhas ou dos devaneios adolescentes de uma ida a Badajoz. Lembro-me de me perguntarem o que fazíamos lá durante um mês. A minha resposta repetia-se com a monotonia que advém das convicções: nada! E é por isso que é tão bom.  

De facto, não havia grandes actividades, para além do pingue-pongue, dos jogos de gamão ou das idas à terra local ver a novela ou passear um bocado, das excursões a Vila Viçosa pendurados na boleia que substituía os carros inexistentes. Usando uma conjugação verbal já aplicada neste estabelecimento, estava-se. No fundo, ficávamos, e nada havia de mais feliz nessa dimensão de aparente inactividade. Não estávamos obrigados à agitação, não queríamos agitação para além daquela que já tínhamos. Queríamos algo que não se ligasse obrigatoriamente ao frenesim, à necessidade de programas diários, à agitação do corpo ou da mente. Estávamos,  e isso dava-nos - ou dava-me, pelo menos - uma tranquilidade enorme e uma felicidade cujas razões só tarde percebi. Queríamos estar, porque encontrávamos nessa realidade aquilo que cada um precisava, ditado pela ingenuidade ou pela necessidade do subconsciente. Aquela casa era o nosso mundo. Ou era o meu mundo. 

***

Já no final do poema referido, e referindo-se ao seu Agosto, diz Ruy Belo: 

Agosto não é a pura palavra não é determinada designação para um tempo
onde cada uma dessas coisas anualmente se encontra comigo
Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde procuro pôr os meus passos
onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que no frágil edifício dos dias

Subscrevo tudo, se o poeta, lá na eternidade onde vive, me deixar substituir Agosto por Setembro

Setembro começou, para mim, em 1971. Se à chegada àquele meu Alentejo me tivessem perguntado o que é que eu queria, a resposta seria óbvia: kungokhala. Bom Setembro para todos.

JdB 

01 setembro 2024

XXII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 7,1-8.14-15.21-23

Naquele tempo,
reuniu-se à volta de Jesus
um grupo de fariseus e alguns escribas
que tinham vindo de Jerusalém.
Viram que alguns dos discípulos de Jesus
comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.
– Na verdade, os fariseus e os judeus em geral
não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos,
conforme a tradição dos antigos.
Ao voltarem da praça pública,
não comem sem antes se terem lavado.
E seguem muitos outros costumes
a que se prenderam por tradição,
como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –.
Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:
«Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos,
e comem sem lavar as mãos?»
Jesus respondeu-lhes:
«Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas,
como está escrito:
‘Este povo honra-Me com os lábios,
mas o seu coração está longe de Mim.
É vão o culto que Me prestam,
e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.
Vós deixais de lado o mandamento de Deus,
para vos prenderdes à tradição dos homens».
Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão
e começou a dizer-lhe:
«Ouvi-Me e procurai compreender.
Não há nada fora do homem
que ao entrar nele o possa tornar impuro.
O que sai do homem é que o torna impuro;
porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:
imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, cobiças, injustiças,
fraudes, devassidão, inveja,
difamação, orgulho, insensatez.
Todos estes vícios saem lá de dentro
e tornam o homem impuro».

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