Num romance, ou filme, de cujo nome não me recordo, alguém termina uma relação com alguém dizendo-lhe: não gosto da minha imagem que vejo reflectida nos teus olhos. Essa imagem não sou eu.
No conto O Príncipe Feliz (citado por Irene Vallejo em O Futuro Recordado, Bertrand Editora, 2024), Oscar Wilde coloca na boca do rio a seguinte frase: porque quando se inclinava, eu conseguia ver a beleza das minhas águas nos seus olhos.
Num dos seus poemas de que mais gosto - Impressão Digital - e que já citei abundantemente neste estabelecimento, diz António Gedeão:
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Onde uns vêem lutos e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Tanto tem razão o personagem que põe fim à relação como tem razão o rio que vê a beleza das saus águas reflectidas no Príncipe Feliz. Quem tem mais razão ainda é o Gedeão, que alguns conheceram como Rómulo de Carvalho. Afinal, cada um vê o que quer nos olhos do outro. Talvez a pergunta, que tanto tem comovido entrevistados, o que dizem os teus olhos?, não tenha uma resposta verdadeira ou não tenha uma resposta falsa e, por isso, seja uma pergunta que pode devolver-se ao entrevistador: e tu, o que vês nos meus olhos?
Conhecemo-nos através dos outros, através do que nos dizem, do que nos respondem, da forma como reagem às nossas palavras ou aos nossos actos, como comentam as nossas decisões ou dão opiniões sobre os nossos gestos. Está no domínio do sonho (que se transformará em pesadelo) achar que temos direito ou só queremos ver a luz nos olhos do nosso próximo. Provavelmente vemos tudo - o sol e a sombra, o que temos de melhor ou o que temos de pior, a luz e a escuridão. Por vezes vemos o que somos e não queremos ver, por vezes vemos uma imagem injusta, por vezes vemos o amor mas preferimos ver outra coisa, porque o reflexo nos parece desagradável. E quem disse que o exercício do amor era sempre agradável?
Vemos o que quisermos ver: vemos moinhos? São moinhos. Vemos gigantes? São gigantes. Acima de tudo, precisamos de escolher bem o que vemos nos olhos do outro.
JdB
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