18 novembro 2008

História da primeira vez

Mesmo na varanda, o dia esperava para passar.

A sala velava a obscuridade dos cortinados corridos, coando pela cor em tempos definida um tom constante e vago e duas linhas finas de luz e de poeira.

Regressado ao maple, recostou os olhos no ponto brilhante onde uma das linhas encontrava o chão.

Passou da nódoa redonda no tapete puído ao quadro de sempre por cima do aparador.

Reparou que a figura ao fundo do lado da árvore maior tinha na mão um peixe.

Trincou de lado o indicador e vagueou o olhar até voltar ao peixe, cada vez mais nítido depois de anos e anos de ausência.

A hesitação, embora tranquila, deslocou-se da novidade impossível à tentação inerte do corpo feito pesado.

E do maple para lá.

Franziu a miopia, poupando as pernas.

O pequeno peixe rebrilhava, desviado agora para o centro do quadro, num protagonismo crescente que não podia ser.

E da mancha pincelada inicial definia-se, já não um peixe que parecia, mas claro e evidente robalo de três quilos que a mão do pescador, esse sim esboçado apenas, segurava em esforço.

O bicho pulava do fundo magenta forte, em riscos de sombra, avolumando o desenho por escamas e luz branca.

Era também novo o magenta ao fundo?

E o traço a vermelhão limpo que a mulher sobre o ribeiro nunca vestira?

Carregou um pouco mais no amarelo nápoles e segurou o céu num ponto de fuga firme e perfeito azul-cobalto.

Logo ele que não tinha grande jeito para pintar.

JCN

1 comentário:

Anónimo disse...

ai, não que não tem...

tem o olhar, o desejo, a inquietação, as cores, o pretexto, as formas, o tempo, (...) e a vontade alquímica de tranformação na alma...

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