30 dezembro 2015

Da paz

Fotografia de Sarah Scarborough

Já aqui escrevi sobre isto, estou certo. Mas também estou certo de não me lembrar quando, nem a propósito de quê. Talvez fossem apenas devaneios - como tantos dos meus textos - lidos por um punhado incompleto de fiéis leitores e outro punhado menos incompleto de pessoas que por aqui passam, diária e ingenuamente, à procura de um sobressalto criativo do editor e dono do estabelecimento.  Talvez fossem desejos meus de me ler a mim próprio. Tenho destas coisas na escrita: um misto de gozo e de pedagogia própria. Se eu ler o que escrevi é quase como se fosse outra pessoa a dizê-lo, e as coisas assumem uma relevância diferente. Sempre para melhor, adivinho eu. Até porque me acontece algo de há tempos para cá: desenvolvo um argumento e, a meio do caminho, sinto a necessidade de perguntar: estou a fazer-me entender? Do lado de lá vem quase sempre um sim, e eu, cheio de inseguranças, prefiro ler-lhes sinceridade a compaixão. 

Retomo o raciocínio: falo de paz conquistada. Há quem precise de estar em paz consigo para conquistar a paz externa; há quem precise de paz com os outros para conquistar a paz consigo próprio. Sei o que sou e a minha ordem de precedência na paz interna / externa. Mas não é disso que falo, que os que me lêem - poucos, o que é sinal de discernimento - já deram para esse peditório. A minha dúvida é esta: há alguma coisa que nos diga que uma forma é melhor do que a outra?  Isto é, há regras aconselhadas, teorias elaboradas, versículos bíblicos que nos ensinem a calcorrear o caminho da santidade para o qual temos de escolher este em detrimento daquele?

Acabei esta semana de ler as cartas que Etty Hillesum escreveu do campo onde esteve presa, na Holanda. Talvez a parte mais bonita, e que decora uma parte da contracapa, seja esta: "queria dizer apenas o seguinte: a miséria aqui é realmente terrível e, ainda assim, à noite, quando o dia caiu num abismo atrás de mim, costumo caminhar a paso enérgico ao longo do arame farpado e, nessas alturas, volta a assolar-me o sentimento de que esta vida é algo de glorioso e magnífico e que, um dia, teremos de construir um mundo totalmente novo. E quanto mais delitos e horrores se derem, mais amor e bondade teremos de oferecer em contrapartida, sentimentos que temos de conquistar dentro de nós. Podemos sofrer, mas não podemos sucumbir."

Etty Hillesum embarcaria no comboio da morte em 7 de Setembro de 1943 com os Pais e o irmão. Nenhum sobreviveu. A sua última carta conhecida data desse dia. Há referência a um postal que foi atirado para os carris. Talvez haja aqui a metáfora de uma carta que foi enviada para o mundo, não para um destinatário especial.

Etty partiu em paz. Durante dois anos, as cartas que ela escreve falam de trivialidades, deste ou daquele, mas também falam de miséria, de sofrimento, de morte. Sempre numa referência aos outros, sempre numa enorme compaixão pelo próximo, compaixão que se revelava em actos concretos, não em palavras mais ou menos bonitas. Etty condoeu-se, tratou, chorou - sempre pelos outros. Quando partiu para um destino que ela sabia não ter regresso partiu, repito, em paz. Onde foi ela buscar esta paz? Aos outros, ou os outros foram beneficiários de uma paz que era dela? 

No excerto que cito mais acima, encontro uma possível resposta para uma pergunta - onde começa a paz? - que talvez só a mim interesse. Na frase "... sentimentos que temos de conquistar dentro de nós" talvez esteja tudo...

JdB     

5 comentários:

Anónimo disse...

O problema é saber o que significa paz. Será a ausência de guerra ou exige-se também a ausência de inquietação ? Não haver litigio ou nem sequer haver tensão ? Paz ou "guerra fria" qual será a verdadeira e melhor vida daquele que tem uma utopia e que a ela se entrega?

JdB disse...

Toda a vida é um equilíbrio instável, mas a guerra frio é-o ainda mais. Não há paz na guerra fria, apenas ausência de guerra, ausência essa que é gerada por uma tensão que é igual, mas de sinal contrário. Ainda que haja alturas em que a paz é apenas a ausência de guerra, ou a saúde é apenas a ausência de doença, nem sempre deveria ser assim. Talvez não devesse nunca ser assim.
Talvez a paz não seja mais do que uma sopa da pedra espiritual onde entra tudo - as inquietações, as guerras momentâneas, os desânimos, os sentimentos de injustiça, as imperfeições. Mas onde entra também o amor, o desejo de luz, a vontade de estender uma mão ou de reforçar um olhar, os entendimentos únicos, os gestos decifrados.
"Ausência de ..." nem sempre constrói, por vezes só protege. A paz tem de ser construção.

ACC disse...

guerra e paz são dois extremos de um contínuo - assim reza a teoria.
Se há guerra não há paz, se há paz, não há guerra.
Será mesmo assim? será que guerra e paz são apenas dois pontos de uma recta que não tem fim? Serão também duas rectas que se interceptam aqui e ali? sim, porque a guerra constroi-se de batalhas, inquietações, conflitos, emboscadas, traições,bombas destruidoras ou apenas ameaças e a paz de rotina, sossego, luz, harmonia, bonança ou apenas apatia. Será então que a intensidade das coisas que constituem a guerra e a paz são idênticas para todos? e quem fornece a medida, nós próprios ou os que nos rodeiam?
pois eu concordo com Etty
"E quanto mais delitos e horrores se derem, mais amor e bondade temos de oferecer em contrapartida, sentimentos que temos de conquistar dentro de nós"

Mas quanto mais guerra, mais paz temos de conquistar dentro de nós e aos outros,
porque a nossa paz não chega para o equilíbrio dos extremos, temos de a saber dar e
encontrar a paz COM e NOS outros.

Confuso não?

Anónimo disse...

Daqui a meio século a escrita vai ser difícil, ou não?
Substituir nacional-socialismo por isis e umas A Frank por outras.

arit netoj disse...

Há muitos tipos de paz, a da Etty era interior, construída a partir de uma enorme confiança no Bem maior, na eternidade, na alegria que só Deus dá...
Beijinhos e um ano cheio desta paz...

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