25 fevereiro 2016

O dactilógrafo honesto

Não havia sido preciso mais nada para que a sua atenção se focasse naquele anúncio. Bastava o título: "cego precisa de dactilógrafo honesto". Não falava em invisuais, em técnicos disto ou daquilo, numa clima de confiança que sempre deve estabelecer-se entre parceiros do mesmo negócio, em contratos ou em evolução da carreira; nem sequer usava a terminologia politicamente correcta do dactilógrafo/a.  As palavras eram claras, curtas e concisas: cego, dactilógrafo, honesto. 

Vítor apresentou-se ao serviço numa segunda-feira em que o calor estalava as pedras da calçada e tudo, mesmo aquilo que seria um oásis, tinha uma vaga aparência de deserto. O calor era de facto brutal, naquela manhã de Agosto. Ao subir as escadas de um prédio velho da Avenida Almirante Reis (e pensou na tristeza de um homem da república - em bom rigor, no limbo entre um regime e outro - de quem não se sabe o nome próprio, apenas que é "almirante" e "reis") imaginou a Deolinda, namorada recente, em topless na costa alentejana, saltitando na arrebentação das vagas mansas. Mais do que imaginar-lhe uma nudez inquietante e uns seios diabólicos, tinha a certeza do olhar devorador do Mário, amigo de sempre que cobiçava a Deolinda como uma criança cobiça um rebuçado - guloso e sem pudor. Amigo - o Mário - que a acompanhara de férias, guiando o seat ibiza verde-claro em direcção ao parque de campismo. Tudo corria mal naquela segunda feira calorenta e enervada. 

- Bom dia, senhor Augusto, como vai hoje? 
- Olhe Vítor, é como vê...
- Está muito calor, senhor Augusto
- Pois está, Vítor; até se vê o sol a fritar as pedras da calçada...

Vítor sentou-se ao computador. Enquanto o windows fazia actualizações (algo que lhe parecia repetido e moroso) esticou e lançou um olhar à casa. Não viu nada, havia de confessar, porque só imaginava os saltos da Deolinda, o peito ofegante e perlado de suor, a toalha a correr aquela pele macia. E o Mário, esse malandro, a cobiçar-lhe tudo - os lábios, o corpo, a infidelidade, os cabelos pintados na Cátia, salão de cabeleireiro do Pragal.

- Podemos começar, Vítor?
- Claro, Sr. Augusto...

O sol punha-se no fio do horizonte: grande, alaranjado, lento, inspirador. Miriam recostou-se a uma duna e fechou os olhos para sentir a sua vida a correr-lhe pela frente. O pai autoritário, a mãe doce, a criada fiel, o primo namoradeiro. O mar, na suave rotina das marés, enchia o fim de tarde com um aroma de maresia e saudade. Miriam deixou-se ir e estava certo de sonhar algo igualmente perturbador e censurável: Charles, o maior amigo do seu marido, acariciava-lhe os pés e subia por aquela geografia humana como quem ascende aos céus, feito pecador com ambições de santidade. Oh não! Charles, o que dirá o meu marido? Mas Charles não parava, enchia-lhe a boca de beijos e o corpo de mãos ávidas e sedentas, afagando, desapertando, tocando. Oh Charles, oh Charles...  

Para Vítor, recém despedido de um stand de automóveis em segunda mão, tudo isto era de mais. Miriam era a Deolinda, Charles o Mário, esse malandro de olhos desvairados e mãos descontroladas a cobiçar-lhe a namorada, a espreitar-lhe as pernas bronzeadas ao ritmo de uma janela aberta na planície alentejana. E a sussurrar-lhe, estava certo, frases tentadoras: o Vítor não é para ti, não tem mão que abarque esse corpo... Em rapaz já o gozavam, e à pequenez dos atributos...  E o sacana do cego, que raio de romance havia ele de estar a escrever, um decalque da vida dele. 

Trabalharam mais 1 hora.

- Leva-me o texto ao editor, Vítor? Vê se fica tudo bem?
- Claro, Sr. Augusto. Pode ficar descansado...

À medida que o editor lia o texto o semblante carregava-se. Foi isto que ele ditou? E o dactilógrafo honesto, mirando com desinteresse uma ligeiríssima sujidade numa unha. Pois pode crer... Ele não está bem. E o editor entristecido, a ver-lhe fugir um novo concurso de uma câmara nortenha que incentivava escritores de mobilidade reduzida (e um cego não tem mobilidade reduzida?, gritava à administrativa camarária).

A piscina está suja. Boiam cocós e seringas sujas. Ao lado da cadeira partida um cão mija de perna alçada. Há uma criança que grita e que leva porrada, uma mulher que grita e que também leva porrada. Há um bêbado que prega rasteiras a um cego, um mudo que chama palavrões ao primeiro ministro. Há a Deolinda nua e o porco do Mário que lhe espreita a borboleta tatuada numa bochecha do rabo. Se os apanhasse agora dava-lhes um enxerto de porrada que os virava. Rai's parta tudo, mais o sacana do cego.

Cego precisa de dactilógrafo honesto.

JdB    

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