27 abril 2016

Da repetição e da recordação

Para Platão, todo o conhecimento é reminiscência. Para Kirkegaard, repetição e recordação são um mesmo movimento, mas em sentidos opostos: aquilo de que nos recordamos, já foi; a repetição propriamente dita é uma recordação para a frente. Por isso a recordação provoca nostalgia, tristeza, enquanto que a repetição, em sendo possível, torna o Homem feliz. 

O tema da repetição embateu-me na testa num dia qualquer da semana passada, tendo-se reavivado este fim de semana quando li um artigo no Observador sobre turismo. Eu próprio repeti viagens por gosto, por força das circunstâncias, por afecto. Como já o afirmei, uma parte substantiva de mim viaja em busca do regresso a casa. Repetimos viagens, talvez não repitamos as emoções - a nossa circunstância é diferente, os sítios estão diferentes, os nossos sentidos são diferentes. E no entanto, grande parte das cidades - pelo menos as zonas históricas - permanecem inalteradas de há muitos anos para cá. 

Para Kirkegaard havia dois tipos de viagens: as interiores e as exteriores. E havia dois tipos de viajantes: (i) os que numa cidade vão conhecer o que é suposto conhecer-se; e (ii) os que conhecem intensamente uma parte, ignorando sítios paradigmáticos (p. ex., ir a Paris e desconhecer a Torre Eiffel). Com o avançar do tempo as minhas viagens perderam um pouco o pendor cultural (museus, palácios, etc.) para se debruçarem mais sobre a vida das ruas. Comecei a privilegiar estar sentado numa esplanada e ver gente a passar, adivinhando-lhes a vida. Nada de muito original, portanto. 

Veneza (Photo by Ian Gavan/Getty Images)

Com excepção de Londres, a minha viagem mais repetida talvez tenha sido Roma: fui em 1982 ou 1983; repeti em 1986 e por alturas de 2002 ou 2003, num âmbito profissional. Visitei-a pela última vez em 2011, parece-me. Em 1982 sentava-me calmamente nas esplanadas, nas escadarias, na Trinitá dei Monti, na Piazza Navona, na Fontana di Trevi. Comia na rua ou em tascas, tentava exercitar o meu italiano com os locais. Em 2011, quase 30 anos depois, o que mudou nesta viagem repetida? A Roma arquitectónica estava lá toda, inalterada. A Piazza Navona continuava a ser, com as suas fontes, uma das mais bonitas praças do mundo; a Fontana di Trevi ainda tinha moedas lançadas pela superstição ou pela tradição. O que mudou, repito? O ruído ambiente: nas esplanadas ouve-se chinês, americano, francês, castelhano; atirar uma moeda para uma fonte é um exercício de atleta com treino, porque não há qualquer garantia de que a moeda, que é atirada de tão longe, caia onde deve. O que mudou de Roma? O que mudou na nossa relação com Roma quando o ruído ambiente também muda?

Volto ao artigo do Observador, lembrado de dois amigos que, na semana passada, foram a Veneza pela primeira vez. Alguns números: nos últimos 30 anos, 46% da população de Veneza saíu da cidade - hoje são apenas 55.000; as previsões mais aterradoras apontam para que em 2030 não haja gente local a viver naquela cidade; há 22 milhões de visitantes por ano, sendo que apenas 2 milhões visitam museus pelo que, depreendo, o resto anda pelas ruas e canais. Ouve-se falar italiano em Veneza? E que impacto tem isso na forma como andamos de vaporetto ou nos sentamos numa esplanada na Praça de S. Marcos?

A ideia de viajarmos para conhecer a vida local talvez tenha os dias contados, se entendermos vida local como interagir com os nativos. Não há garantia, ao contrário do que diria Kirkegaard, de que a repetição nos faça mais feliz; para um tipo de viajante, e relativamente a determinados locais, sobra-nos a recordação. Volta, nostalgia, estás perdoada.

JdB    

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