29 abril 2016

Ler Qohélet: À procura de quem procura a verdade *

Existem livros particularmente preciosos em momentos de transição, individuais ou coletivas. Ajudam-nos muito a compreender profundamente a natureza das crises que vivemos, dão palavras às emoções, aos sentimentos, às dores. Iluminam zonas escuras, às quais só palavras maiores que as nossas conseguem dar-lhes um nome, chamá-las, iluminá-las.

A elevá-las. Como poderíamos reaprender a falar-nos e a olhar-nos ainda nos olhos, após as guerras e os holocaustos, se não tivéssemos a “Divina comédia”, os “Cantos” de Leopardi, os “Demónios” de Dostoevskij, “José e os seus irmãos”, de Mann, “Os miseráveis”, de Hugo, “O estrangeiro”, de Camus, “Se isto é um homem”, de Primo Levi? Estes e outros grandes livros produzem sempre o mesmo efeito admirável de Ésquilo que, com “Os persas”, era capaz de fazer chorar os atenienses, levando-os a identificarem-se com a dor dos persas, por eles derrotados na batalha. Estes mitos e estes livros reconstituem o que a política não pode reconstruir, saram – beijando-as – feridas que parecem insanáveis, regeneram uma nova fraternidade humana.

Alguns livros, porém, não são preciosos apenas durante o período das crises: são essenciais. Quando um mundo terminou e o novo ainda não se vislumbra, nos “sábados santos” da existência das pessoas e dos povos, a companhia de alguns livros torna-se o pão quotidiano da alma. O Qohélet é um deles. Sempre me fascinou este livro tão diferente dos outros textos bíblicos, comparável apenas a Job, a algumas páginas de Jeremias, de Isaías, dos Salmos, do Evangelho de Marcos. Um livro cuja leitura pode mudar a vida, pode introduzir-nos numa fé e numa humanidade novas e adultas. Com e como Job, Qohélet é uma profunda e eficacíssima cura das principais doenças de todas as fés, religiosas e laicas: a ideologia e a procura de fáceis consolações como respostas banais a perguntas difíceis e tremendas.

Qohélet foi escrito para quem quer salvar a própria vida e a si próprio da eterna tentação da ideologia. Os homens religiosos e os sensíveis à ação do espírito começam a sua história de fé seguindo a voz que os chama, começam a segui-la com outros companheiras e companheiros de viagem e, depois, criam instituições para guardar e servir aquela voz na história. Chega, porém, pontualmente a tendência-tentação invencível de não se contentar com a nudez daquela voz e, rapidamente, à volta da primeira voz dos pais nasce a ideologia dos filhos. Formam-se, assim, as religiões onde, com o bom grão da fé, se acumula, nos anos e nos séculos, a palha da ideologia da fé que, com o tempo, cresce e se multiplica. E, se não fossem os profetas e os sábios a salvar, cada um a seu modo, o bom grão, a palha chegaria a cobrir todo o trigo, até a sufocá-lo. Esta dinâmica serve para todas as fés religiosas e laicas onde, se não são idolatrias, se encontram também os profetas e os sábios, que são a principal prevenção e cura das ideologias.

Com Job e com Qohélet, a tradição sapiencial bíblica atinge um cume altíssimo, porventura insuperável, e torna-se dom universal para todas as mulheres e todos os homens que procuram proteger, da ideologia, a própria fé. A ideologia é a morte da fé porque toda a ideologia religiosa é sempre idolatria, é a transformação de YHWH num bezerro de ouro. É assim que as fés se tornam ética, manuais de boa convivência cívica, práticas de piedade, coleção de falsas consolações, religiões económicas.

Qohélet, como e juntamente com Job, é o grande inquisidor e refutador da religião contributiva, da ideia radicadíssima na sua (e nossa) cultura que o justo é recompensado com bens, saúde, filhos e providência e que o ímpio é desventurado e pobre porque é culpável de uma culpa, sua ou dos seus antepassados. Ler Qohélet, despidos e desarmados, é, portanto, antídoto contra a nova-antiga idolatria meritocrática que está a invadir, sem encontrar qualquer resistência, as empresas, a política, a sociedade civil e, também, até alguns setores das Igrejas.

As ideologias são ações comuns, mas são também criações individuais, porque cada crente produz a própria ideologia, que se instala no coração da experiência religiosa. Fé e ideologia crescem juntas, entrelaçadas uma na outra, e só um trabalho duro e determinado pode – e deve – ocasionalmente, distinguir, separar, fazer penetrar a lâmina nas fibras para cortar e curar, e recolocar-se, pobre e manso, à escuta.

A produção de falsas (porque fáceis) consolações é um fruto típico de uma fé tornada ideológica. Inventam-se paraísos artificiais, seguros e claros, em vez do verdadeiro, incerto e misterioso e geram-se ilusões apenas porque se é incapaz de elaborar as desilusões de qualquer fé não vã.

A Bíblia – hebraica e cristã – quis conservar Qohélet entre os seus livros mais preciosos, um livro onde não está nem YHWH nem a fé dos Patriarcas, não se vê a terra prometida, nem há Moisés, nem a sua Lei. Se, na Bíblia, está Qohélet, então no coração do humanismo bíblico há também lugar para quem, como “O que fala na assembleia” (isto é, Qohélet, o Eclesiastes), coloca à vida e à fé as perguntas mais extremas, radicais, nuas, escandalosas – algumas tão inconvenientes que os vários editores e redatores do texto sentiram a necessidade de as corrigir.

A presença de Qohélet no coração da Bíblia e da tradição hebraico-cristã é uma ferida, porque a travessia de Qohélet não é geradora se não sentimos a dor – nossa e do mundo – à medida que encontramos as suas palavras. Mas, como muitas feridas fecundas, esta presença é também uma abertura da Bíblia para cada homem e cada mulher que procura a verdade, mesmo para quem não sente a necessidade de dar um nome religioso a esta sua procura. Da janela de Qohélet, o humanismo bíblico sai e chega ao último duvidoso ser humano amante e investigador da verdade; mas, através desta janela, é toda humanidade que entrou e continua a entrar dentro da Bíblia e, uma vez entrada, a tornaram mais bela, mais humana, mais verdadeira com a sua humanidade honesta, revestindo-a também com as carnes de quem, da Bíblia, não compreendia Isaías ou o Evangelho de Marcos, mas compreendeu e amou o cantor da “vanitas”.

O livro de Qohélet foi escrito em Israel, durante a conquista grega, quando um grande império estava a impor a sua língua e a sua cultura. Alguns intelectuais hebreus estavam fascinados com aquele novo mundo e com os seus valores de procura da felicidade, do lucro, dos bonitos corpos, do prazer e da juventude. Porém, havia entre os seus contemporâneos quem via nesta “globalização” a crise profunda da cultura de Israel. Qohélet estava entre estes últimos e, por isso, a leitura do seu livro é meditação utilíssima, bastante necessária, para quem, hoje, numa nova idade de globalização e de uniformização de valores, quer pensar, em profundidade, na natureza do novo mundo e dos seus dogmas.

Qohélet é um inestimável companheiro de viagem para quem procura olhar de modo não ideológico e impiedoso os dogmas e os cultos enganadores dos impérios que chegam, para nos dominar. A grande força deste livro antigo está, portanto, na sua capacidade única de olhar, na sua nudez, o que parece novo e fascinante, sem ceder um centímetro moral à necessidade de consolação frente ao mundo tal qual é. Este autor anónimo antigo teve a força e a coragem ética e espiritual de colocar perguntas radicais ao seu mundo em crise, que conseguem falar com uma força e profundidade imensas, também hoje, também a nós. Desperta o desejo de pensar sem medo e com coragem aos próprios impérios e aos servidores dos ídolos do prazer e do dinheiro.

Qohélet é guia leal na edificação e uma vida adulta, não ideológica, verdadeira, um amigo incómodo e, por vezes, desconcertante, que nos ama porque não desiste enquanto não tentamos responder às suas perguntas dolorosas e libertadoras.

Quando chega o dia – e ai de nós se não chega! – em que o véu da primeira fé cai e a vida se revela, tudo o que constituiu o enredo da nossa experiência espiritual e ideal parece comédia ou tragédia. Os companheiros de ontem tornam-se apenas atores e máscaras de um guião escrito por ninguém, uma peça de teatro do absurdo, connosco no papel de protagonistas. Encontramo-nos, subitamente, sós num palco vazio, com os cenários desmontados e arriados. Neste dia, dramático e esplêndido, aparecem sempre duas possibilidades. Podemos começar nós a escrever, desta vez propositadamente, um guião para uma nova comédia-tragédia. E, assim, transformamos aquele palco que, até ontem pensávamos que era a vida verdadeira, na nossa única nova vida. O teatro torna-se vida. Não suportamos a nudez do palco vazio e desolado, e tornamo-nos escritores, encenadores e atores da nossa comédia. Negamos e fugimos da realidade e, para sobreviver, entramos voluntariamente no nosso “The Truman show”. A segunda possibilidade está em querer iniciar, finalmente, a vida espiritual: saímos do teatro, pomo-nos a caminhar ao longo dos caminhos do mundo, e começamos a procurar uma nova fé, nas dores e alegrias verdadeiras da gente verdadeira à nossa volta.

Descobrimos Job, os Salmos, e começamos a ser lidos e cantados por eles. E, depois, por vezes, encontramos Qohélet e, com o barro do seu nada verdadeiro, começamos a fazer tijolos para construir a nossa nova casa. Qohélet não nos guia na construção de uma catedral; apenas nos faz obreiros de uma casa dos homens que já não querem viver dentro de uma ficção consoladora. Uma casa sóbria e sem ídolos onde, um dia, talvez, possamos reaprender também a rezar.


* Luigino Bruni
In "Avvenire"
Trad.: António Antão
Publicado aqui em 27.04.2016

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